Eu, o ghost-writer

ghost writer

Em anos pretéritos, não, não darei a exata data, mas digo que foi em tempos de antanho. Um amigo me levou até à editora e gráfica de Maurinho, o filho-de-uma-égua.

Mais outro, de uma coleção que tenho.

Pretendia eu, vejam só, que fossem meus (sinto as faces rubras só no pensar), digamos assim, poemas, postos em livro.

E então, lá, como manda o figurino, apresentei os calhamaços, os papéis, que Maurinho folheou assim como quem nada quer. Inicialmente nos estranhamos, depois engatamos uma conversa maluca, onde entrou o roquenrol, os upanixades, Regina Duarte, Yukio Mishima, Jackson do Pandeiro, Radamés Gnatalli, a vida, Miles Davis e o cerol em linhas de pipa.

Maurinho pediu discreta vênia, pedindo ao meu amigo a devida paciência,  me convidando a seguir a que conhecesse seu império.

Traduzindo, me levou por uma escusa porta aos fundos de sua, vamos dizer assim, editora, e que nos levou a um sebo que mantinha e que dava para a rua paralela (não, não direi onde. Certos pudores ainda me prendem).

Mirífico, sujo, o pestilencial sebo de Maurinho, colado à editora e gráfica, rabo com rabo, me encantou e entonteceu e tanto, que esqueci dos poemas. Era um universo, um plano dimensional inteiramente novo, onde se acharia e se achava de tudo: cordéis, romances, podríssimos acetatos e raridades tão raras que encantariam até uma virgem analfabeta.

Dali, nas estantes cambetas, me acenavam um long play do filme Borsalino (Alain Delon e Jean-Paul Belmondo), o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, ao lado de quadrinhos dos setenta da editora EBAL, do saudoso e imerecidamente esquecido Adolfo Aizen.

Maurinho me levou até um cubículo fedorento nos fundos e de uma gaveta em uma escrivaninha decrépita retirou a garrafa medonha, que até hoje me dá náuseas só de lembrar, do demoníaco conhaque Padre Cícero.

“Olha, os teus poemas…”, disse depois de um trago bem servido, “queria que você soubesse, são uma merda”. “Não que você seja ruim, até que tem bom domínio da língua, vocabulário, mas continuam sendo uma merda, os poemas vossos.”

E continuou. “Ô menino, veja bem, existem dois tipos de pessoas que escrevem poemas: os merdas, seu caso, me perdoe e os poetas de verdade. Bota fé em mim, você não é poeta. O fato é que você é inteligente, mas quem foi que disse que poesia é para os cultos? Mestre Aderaldo era analfabeto e Luiz Gonzaga tinha pouca instrução, mas os dois eram gênios. Agora, pode me mandar à puta-que-me-pariu!”

Maurinho era pernambucano de Caruarú e fizera de tudo na vida desde que aportara em São Paulo, de segurança de puteiro a engraxate, com uma temporada inesquecível como cantor de boleros numa churrascaria.

“Eu não cantava mal e fiz certo sucesso, mormente com as damas, apesar do metro e setenta.”

Serviu-me outra dose da pestífera beberagem.

“Sabe por que me dei ao trabalho de gastar meu tempo e conhaque vagabundo com você? Bem, é que eu vejo em você um certo potencial. Um dom para a conversa mole. Qualidade raríssima!”

“Veja…” e professoralmente levantou um dedo, “eu não creio em partidos, religiões e em sistemas. Eu creio é em Maurinho, eu mesmo. Acho as pessoas…fundamentalmente idiotas, manipuláveis. Entendeu a ideia, meu mote de vida? Algum outro imbecil comum, mas você não, percebi bem antes, ficaria impressionado, enojado. Você só fica perplexo mas, seja honesto, fica também maravilhado, engrandecido e agradecido a Deus por ter conhecido um filho-da-puta como eu. Um merda que fez da merda seu lucro. Mas…como diz o poeta ou político, tergiveso…”

Me explicou então Maurinho que seu negócio, ou negócios, eram híbridos: um sebo em uma rua e uma gráfica e editora na outra. E, vejam que genial, editora esta onde publicava livros efêmeros, de pouca tiragem, que vendia em bancas de jornal, principalmente (eram os anos oitenta e não havia internet).

“Então, o que eu vendo é lixo. Livros que ensinam a falar inglês em trinta dias, livros esotéricos de merda que prometem de tudo, desde o Nirvana até o Apocalipse, manuais de prática sexual ─ ilustrados, fique claro, com fotografias surrupiadas de livros pornográficos dinamarqueses (anos oitenta, eu disse) ─ e de espionagem e os caralhos.”

“Mas…” e Maurinho fez pausa dramática, “tenho um diferencial: meus autores são, todos, americanos ou ingleses. Jones, Ferguson, McIntontosh, Knox, são todos meus contratados. Verdadeiros, claro, como os Diários de Hitler, que, aliás, estarão na banca no mês que vem.”

Fiquei pasmo e tanto que me servi de outra dose generosa.

“Então, caro poeta, a proposta que lhe faço é esta. Quero, ambiciono seus serviços para que seja o senhor meu mais novo contratado, com um pagamento de merda, é claro, para que me escreva estes livros, sob glamuroso pseudônimo. Inglês, esclareço.

Amigas e amigos, tremi.

Mas permitam que vos diga que desisti de publicar meus poemas. Aliás, me garantiu Maurinho que se eu o quisesse ele os faria, mas toda a edição seria por mim paga.

Acho, acredito, que foi das decisões mais sábias que tomei na vida.

Entretanto, quanta riqueza eu trouxe à literatura!

Como escritor fantasma de Maurinho me deliciei em entregar às bancas de jornais obras hoje inesquecíveis.

Ora pois, quem, senão eu, sob o nome de Eaxton Boisen, criou o fantástico detetive Stuart Paxton, que resolvia os mais intrincados casos, enquanto comia a mulherada toda? Quem, me digam quem, poderia ter cometido O Manual da Maçonaria Universal pela pena do Professor Boanerges Cotrim (único autor que psicografei com nome português)? E que me dirão da Prática Sexual Dinâmica, assinado pela correta doutora Hope Richardson?

Falei da famosa série da sedutora Rebeca Claxton? Agente secreta da Dragon, agência secreta de espionagem, ramo do MI-6 inglês, que perambulava pelas camas de milhares de homens, descobrindo-lhes todos os segredos?

Procurem, devassem os sebos. Quem sabe vós, pessoas do bem, não encontrarão ainda um exemplar sobrevivente?

Todos de minha alçada e habitantes leais de bancas de jornais paulistanas até o final dos anos noventa, ocasião em que Maurinho teve o seu ataque cardíaco programado e final e sua editora e sebo foram para o limbo.

Compareci ao enterro e “bebi ao defunto”.

Era um dia frio de junho.

Muito frio.