AS CRÔNICAS DE VERÃO

Lago Nofuto - Kiyo
Lago Nofuto – Kiyo

 

BALAC, O MUTILADO.

A paisagem do lago Oeste é a mais bela do mundo.

De onde estou posso ouvir o chiado dos peixes sendo fritos mais adiante, na popa. Estranhamente, cheiro algum chega até mim, o que empresta à cena um matiz a mais de irrealidade.

Quem sabe? Alguém sabe? Talvez este seja o barco das fadas e este lago talvez seja o sonho cansado de um mercador. Digo-o a Alix e ela ri, entornando mais vinho em minha taça.

Bebi talvez demais. O barco roda e eu com ele.

A nossa volta, as árvores se enfileiram até o horizonte, debruçando-se a beira do lago algumas e outras com as raízes já submersas. Pássaros azuis e verdes e ocres, rapinantes dourados, quirópteros mostrando sua bela pelagem azul e ocre e mesmo oliva, todos a emitir um milhão de sons. O lago Oeste não cabe em si.

A água é prata nesta tarde de névoas e frio. Nosso barco cada vez mais longe da margem.

Dentro vagueamos a tarde toda nas águas calmas, onde no momento meus olhos e meus ouvidos estão pousados na placidez. Preguiçosamente me encosto e viro páginas. O códice sobre meus joelhos, sobre meu peito, finalmente sobre meu rosto.

Nosso barco mais uma vez se aproxima das margens, galhos por sobre nossas cabeças, meu camarote aberto, agora, dá para um jardim. Adormeço entre madressilvas e freixos.

Sadoc viera pela manhã, um enviado da Autoridade, cheio de presentes e vestindo a seda mais azul. Por detrás da neblina deixara seus criados ocupados em montar a tenda, tomando o pequeno bote até nosso barco.

Abracei-o e ele me abraçou, conscientes nós dois da tarde, do momento e de necessidades.

Balac é velho

Como a bétula é velha

Como a prata e seus terrores

E tão depressa chegara, veio também a estonteante maré de perguntas e as cartas e tudo tão rápido e estonteante que virei meus olhos para a porta e dali para o lago e suas árvores, refletidas na mansidão leitosa.

O lago Oeste respira suavemente

E sussurra

Ao abrigo das árvores em sua margem

A solidão verde em paz com a névoa

Esta tarde e suas resinas retidas no sonho da madeira

 

Alix sentou-se ao meu lado, “você deveria parar com isso”, disse rindo para ninguém em especial, o que significava que era para mim que reservara as ironias da tarde. “Poeta e lago certamente que formam quase uma unidade, mas é de poesia que falamos, pois não? Você exagera”.

“Perguntaremos a Sadoc”, eu disse.

“Perguntaremos ao juiz do distrito, aos remadores…”, e seu sorriso luminoso expandiu-se de tal modo que me enfureci pela milionésima vez por saber que ela jamais seria minha.

As tardes de sexta-feira, uma concubina, uma pedra

Todas podem ser vistas no fundo do lago,

A mulher traz uma galho de pinheiro oloroso

Entre as mãos postas

Ela era valente e digna

Todo um poema a aguarda em minha lembrança

 

As tardes passam devagar, flutuantes

E é vermelha a pedra.

Ambos ainda me olhavam com, não direi espanto, nem admiração, mas com surpresa, ao término da estrofe. Sadoc serviu-me de sua própria jarra de vinho, Alix adicionou porções de bolinhos salgados em meu prato.

“Linda a imagem da mulher, embora talvez um tanto mórbida, fora de lugar a parelha de concubina e pedra…”, Sadoc encostou a taça na de Alix e depois na minha.

“Mulheres mortas são inadequadas”, eu disse, “por isso providencio lagos e pinheiros”.

“Imagino a seda que ela veste”, Alix me sorria terna e serena.

Meu coração é companheiro da primeira lua

quando descemos até a água

ondas nos tornamos e isso nos conforta

ondas nos tornamos e tal nos parece conveniente

o lago gentil nos fornece roupagem e névoa

 

nossas esposas submersas tecem uma seda macia e azul

“Sabe por que vim até aqui Balac?”, o rosto jovem anuviou-se, torturado.

Não era fácil, eu supunha, um pouco do antigo poeta ainda sobrevivia no jovem aristocrata, ainda permanecia sob a capa risonha Sadoc, o Baladeiro. Muito do que eu gostava dele vinha dessas tensões, que lhe davam um brilho talvez que se apagasse um dia, mas que por enquanto ali permanecia.

“Alguma coisa importante imagino, ou não te mandariam de Armorion até aqui com todo este séquito aparatoso”.

Sadoc, mudo.

“Meus livros proibidos de circular, minha poesia considerada indigna, censurada pelo clero, por seu pai…alguma coisa assim, sem muita imaginação”.

Arrumei meu corpo magro no encosto acolchoado da cadeira, desconfortável ainda mesmo após todos os meses passados, com meus cotos de asas coçando e as costas todas encostadas, de modo inatural e obsceno.

Alix tomou da cítara e se acompanhou na recitação, sorrindo distante.

Comercio com fadas, agora

A moeda de suas asas me basta

Pela manhã, nunca mais Audiarda e o gelo nas montanhas

Nunca mais Briseis e os portos ventosos à tarde

Ainda assim, penso em Armorion

 

Sou somente uma mulher com cítara

Contando os anos e os amores perdidos

 

Eu continuei.

Sou somente um homem sem cítara

Não mais Audiarda, que dirá Briseis

Meu gosto por putas tem mudado

 

Não faço conta de meus anos

os amores estarão por aí, presentes

e nada poderei fazer

Ninguém é culpado pelo céu

 

Em outra hora conversarei com Deus

“Grosseirão!”, e riu.

“Agora, uma balada, leve-a em sua viagem de volta”, me dirigi amargo a Sadoc, “e você também minha Alix de amores perdidos, deve ouvi-la, improvisada como está, mas minha, não obstante”.

Os dois voltaram-me rostos constrangidos, lacrimosos. Ergui meu copo de bêbedo e comecei.

Visitem Armorion, Onde asas em debanda,

Levam ao céu lira e verve

flutuando em negra dança

 

 

Em cada rua um poeta, a cada puta o seu muro

Poeta, puta e monturo, em cada ruela incerta

Em cada buraco um músico, a cada soldado: caserna

A toda hora o seu canto, e brilhante a neve eterna

 

Visitem Armorion, onde todo dia é santo

Onde acalanto é poesia, a cada poeta o seu tanto

A cada padre uma aposta

e missas por ninharia

prelados fazem magia

Lá todos voam de costas

 

 

 

 

 

 

O CAMINHO PARA A BÉTULA

 

Sadoc se retirara para sua tenda.

E Alix veio a meu convite. Acho que falei. Ouçam.

 

“Devo lhe dizer uma coisa que tenho aqui, como direi?, entalada em minha garganta”. Alix sentou-se, não sem um sorriso de mofa, na almofada à minha frente. Ao fundo, mandara abrir a janela dando para as margens.

“Vai morar até o fim dos tempos neste barco? “. Tomou de uma fruta e cravou-lhe delicadas presas, o olhar curioso e maroto.

“ Sabe qual é a ironia maior daquele que procura ser o melhor no que faz? “. Disse como se não tivesse sido interrompido, “ não? Talvez? Não sabe? Bem, por isso a chamei para esta curta, ou assim espero…bem, curta e constrangedora entrevista.”

“Você descobriu que queria ser juiz…ou pretor, e agora não sabe como me dizer que toda sua poesia é uma merda?“.

Suas asas feminis espreguiçando-se roçaram o teto, lânguidas, seus seios se destacando contra a faixa de seda de busto, o rosto sorridente.

“Alguma coisa assim…trágica e patética assim “. Uma aragem gélida penetrou no camarote, me forçando a jogar uma manta sobre meus cotos sensíveis.

“O problema é que Balac é prisioneiro de Balac. Ele não caga mais, não trepa mais, só maravilha aos pacóvios. Todo o século se desmanchando, o Novo Estro, a Palavra de Ouro, os movimentos diversos, as modas de trovador que vêm e vão. Balac é o poeta do momento, cercado de outros tantos maravilhosos, cada um deles um gênio incontestável se saísse da órbita do decano. Mas não, nenhum deles, estes outros maravilhosos, me deixará.”

“O problema é que este Balac precisa que você saiba de algo: será rápido e o mais indolor que eu puder arranjar”.

Uma pequena lágrima começou a se formar em seu rosto e sua mão escorregou pela seda da almofada até a minha. Sua boca se abriu e eu tive certeza de que tentava impedir-me de falar.

“Não, nada assim tão simples“. Desvencilhei-me de sua mão e ri.

“Faremos o que for mais necessário e digno…e se sobrar energia, faremos do modo mais agradável esteticamente também”. Creio que agora eu ria, tristonho.

“Alix, eu já estive perdidamente apaixonado por você. Suspeito mesmo que ainda esteja e é só. Não falaremos mais disso, de modo a que me sobre alguma dignidade”. Alix agora chorava abertamente e em silêncio.

“É claro que você já sabia, ou pelo menos suspeitava, e é claro também que isso não modificaria em nada minha decisão de fazer-lhe tal comunicação. No mais, normalmente…é praxe em tais casos que um dos envolvidos se afaste, mas eu queria que você atentasse para o fato de que só acrescentaria uma nuança a mais ao ridículo. Gostaria que ficasse, portanto”.

“Balac, eu…sinto muito”. Novamente o gesto de me tocar a mão, desta vez interrompido a meio caminho. “Eu abriria o meu peito a faca, eu faria mesmo isso para não te magoar”.

“Perdão, já notou que ‘eu sinto muito’ e ‘meu peito a faca’ podem estar a caminho de se tornarem clichês mortais?”.

E levantei-me dali, arrastando-me para fora com o máximo de rapidez que podia, que se danasse a dignidade.

Eu caminhei no teu barco, ó deus

De popa a proa você não entendeu nada

As madeiras erradas, a decoração, o cômodo para seu coração

Cem mil milhas de espaço inaproveitado

Eu caminhei para nada

Eu caminhei para a névoa, solitária

E chorei pela ironia

Chorei por minha incapacidade

Chorei por meus filhos não nascidos

E eu tinha todo o espaço do mundo

Para me lamentar

 

Eu caminhei no barco do deus

com ele me entrevistei na sala púrpura

nada aconteceu…

Tudo isto é fábula,

meu diamante no meio da urze

Eu ainda aguardo o teu riso

Outra metade do meu poema

Palavra por mim esquecida.

 

ALIX DE BRISEIS

 

UM APÊNDICE

UMA TAVERNA

Também por Alix de Briseis

Balac. E Balac ainda tinha suas asas.

Era então Balac, o Risonho. E havia um Sadoc Sadoques também.

E um Issac, dito o Moço.

Eu servia então na taverna Ao copo e à Lida, (enquanto eles conversavam, eu me perdia em reminiscências e copos de vinho). Havia me despedido de Aram em Briseis e percebia em mim uma necessidade de me perder entre as gentes.

Era um tempo estranho. O ar era mais fino naqueles dias em Ardenca-Sobre-O-Mar.

À Terceira Hora de uma madrugada de Jaspe foram queimados um poeta e um camponês herético. Doze anos me separavam do meu Romance Azul e Carmim e me comprazer em parecer uma tola e encontrar agrado nisso não me parecia difícil.

Lembro com prazer as manhãs em que voltava das compras no mercado sobraçando ovos, chouriço e toucinho rançoso. Lembro de me levantar antes da aurora e me deitar somente em alta noite. Lembro de beliscões em meu traseiro. Lembro do taverneiro, que me ensinou que eu nada sabia sobre como ser estúpido é nada mais que o esperado, é nada mais que natural. Lembro de um bairro em que voar era a mesma coisa que pedir para vomitar e assim todos caminhavam. Lembro de um marítimo que estava engajado em um navio da família de Aram (e eu chorei).

Era uma época de incertezas. Mas, havia verdade.

Cada um tinha a sua é certo. Mas todos com a mesma e insana dose de certeza (a música cheirava à matemática nessa época e correta poesia saía da boca de prelados).

E havia Balac, Issac e Sadoc. Balac ainda tinha suas asas.

Balac, Issac e Sadoc, eu sabia com certo humor álacre, estavam conspirando com o século.

Não me dizia respeito, é claro (eu me afastara e eles respeitavam a minha escolha. Minha solidão).

E eu até mesmo ria à socapa, enquanto lhes servia mais vinho.

E que beberrões aqueles!

Uma constante nos textos da época é a reminiscência, o tempo melhor que já se foi ou então a espera. […] O poeta canta, e há ironia e medo no seu canto, a vida e a arte não são nada mais que reflexos. Consciente dos signos invertidos que utiliza, da linguagem cifrada especular com que tenta cinzelar a realidade e a decadência, a Lenta e digna decadência. Seria demais não lembrá-lo quando referimo-nos a estes tristes filhos da Escola de Armorion? […] …a assim chamada Série de Aram, uma cadeia de poemas e crônicas, escritas provavelmente entre ‘240 e ‘249, cobrindo temáticas as mais diversas, ligadas por um motivo comum: Aram. Provavelmente Aram de Tosques ou Aram da Ilha, advogado e político oriundo de uma das famílias mais antigas de Audiarda. Consta terem ambos, Alix e o citado, tido um relacionamento amoroso de juventude que terminou por imposições familiares. Muito embora Balac, em uma de suas Crônicas de Verão, tenha escrito que terminou porque simplesmente havia “Alix demais para Aram de menos”, o “que talvez tenha sido uma perda para a satisfação emocional e sexual da poeta, mas um grande ganho para a música de sua poesia”…

 

Conimbricensis, Jonas, in ASAS DOLORIDAS: UM ESTUDO SOBRE O MOVIMENTO DECADENTISTA, pg. 304, variorum, Armorion, Shaitani Livreiros, 12.597.

AS CRÔNICAS DE VERÃO

Lago Nofuto - Kiyo
Lago Nofuto – Kiyo

 

BALAC, O MUTILADO.

A paisagem do lago Oeste é a mais bela do mundo.

De onde estou posso ouvir o chiado dos peixes sendo fritos mais adiante, na popa. Estranhamente, cheiro algum chega até mim, o que empresta à cena um matiz a mais de irrealidade.

Quem sabe? Alguém sabe? Talvez este seja o barco das fadas e este lago talvez seja o sonho cansado de um mercador. Digo-o a Alix e ela ri, entornando mais vinho em minha taça.

Bebi talvez demais. O barco roda e eu com ele.

A nossa volta, as árvores se enfileiram até o horizonte, debruçando-se a beira do lago algumas e outras com as raízes já submersas. Pássaros azuis e verdes e ocres, rapinantes dourados, quirópteros mostrando sua bela pelagem azul e ocre e mesmo oliva, todos a emitir um milhão de sons. O lago Oeste não cabe em si.

A água é prata nesta tarde de névoas e frio. Nosso barco cada vez mais longe da margem.

Dentro vagueamos a tarde toda nas águas calmas, onde no momento meus olhos e meus ouvidos estão pousados na placidez. Preguiçosamente me encosto e viro páginas. O códice sobre meus joelhos, sobre meu peito, finalmente sobre meu rosto.

Nosso barco mais uma vez se aproxima das margens, galhos por sobre nossas cabeças, meu camarote aberto, agora, dá para um jardim. Adormeço entre madressilvas e freixos.

Sadoc viera pela manhã, um enviado da Autoridade, cheio de presentes e vestindo a seda mais azul. Por detrás da neblina deixara seus criados ocupados em montar a tenda, tomando o pequeno bote até nosso barco.

Abracei-o e ele me abraçou, conscientes nós dois da tarde, do momento e de necessidades.

Balac é velho

Como a bétula é velha

Como a prata e seus terrores

E tão depressa chegara, veio também a estonteante maré de perguntas e as cartas e tudo tão rápido e estonteante que virei meus olhos para a porta e dali para o lago e suas árvores, refletidas na mansidão leitosa.

O lago Oeste respira suavemente

E sussurra

Ao abrigo das árvores em sua margem

A solidão verde em paz com a névoa

Esta tarde e suas resinas retidas no sonho da madeira

 

Alix sentou-se ao meu lado, “você deveria parar com isso”, disse rindo para ninguém em especial, o que significava que era para mim que reservara as ironias da tarde. “Poeta e lago certamente que formam quase uma unidade, mas é de poesia que falamos, pois não? Você exagera”.

“Perguntaremos a Sadoc”, eu disse.

“Perguntaremos ao juiz do distrito, aos remadores…”, e seu sorriso luminoso expandiu-se de tal modo que me enfureci pela milionésima vez por saber que ela jamais seria minha.

As tardes de sexta-feira, uma concubina, uma pedra

Todas podem ser vistas no fundo do lago,

A mulher traz uma galho de pinheiro oloroso

Entre as mãos postas

Ela era valente e digna

Todo um poema a aguarda em minha lembrança

 

As tardes passam devagar, flutuantes

E é vermelha a pedra.

Ambos ainda me olhavam com, não direi espanto, nem admiração, mas com surpresa, ao término da estrofe. Sadoc serviu-me de sua própria jarra de vinho, Alix adicionou porções de bolinhos salgados em meu prato.

“Linda a imagem da mulher, embora talvez um tanto mórbida, fora de lugar a parelha de concubina e pedra…”, Sadoc encostou a taça na de Alix e depois na minha.

“Mulheres mortas são inadequadas”, eu disse, “por isso providencio lagos e pinheiros”.

“Imagino a seda que ela veste”, Alix me sorria terna e serena.

Meu coração é companheiro da primeira lua

quando descemos até a água

ondas nos tornamos e isso nos conforta

ondas nos tornamos e tal nos parece conveniente

o lago gentil nos fornece roupagem e névoa

 

nossas esposas submersas tecem uma seda macia e azul

“Sabe por que vim até aqui Balac?”, o rosto jovem anuviou-se, torturado.

Não era fácil, eu supunha, um pouco do antigo poeta ainda sobrevivia no jovem aristocrata, ainda permanecia sob a capa risonha Sadoc, o Baladeiro. Muito do que eu gostava dele vinha dessas tensões, que lhe davam um brilho talvez que se apagasse um dia, mas que por enquanto ali permanecia.

“Alguma coisa importante imagino, ou não te mandariam de Armorion até aqui com todo este séquito aparatoso”.

Sadoc, mudo.

“Meus livros proibidos de circular, minha poesia considerada indigna, censurada pelo clero, por seu pai…alguma coisa assim, sem muita imaginação”.

Arrumei meu corpo magro no encosto acolchoado da cadeira, desconfortável ainda mesmo após todos os meses passados, com meus cotos de asas coçando e as costas todas encostadas, de modo inatural e obsceno.

Alix tomou da cítara e se acompanhou na recitação, sorrindo distante.

Comercio com fadas, agora

A moeda de suas asas me basta

Pela manhã, nunca mais Audiarda e o gelo nas montanhas

Nunca mais Briseis e os portos ventosos à tarde

Ainda assim, penso em Armorion

 

Sou somente uma mulher com cítara

Contando os anos e os amores perdidos

 

Eu continuei.

Sou somente um homem sem cítara

Não mais Audiarda, que dirá Briseis

Meu gosto por putas tem mudado

 

Não faço conta de meus anos

os amores estarão por aí, presentes

e nada poderei fazer

Ninguém é culpado pelo céu

 

Em outra hora conversarei com Deus

“Grosseirão!”, e riu.

“Agora, uma balada, leve-a em sua viagem de volta”, me dirigi amargo a Sadoc, “e você também minha Alix de amores perdidos, deve ouvi-la, improvisada como está, mas minha, não obstante”.

Os dois voltaram-me rostos constrangidos, lacrimosos. Ergui meu copo de bêbedo e comecei.

Visitem Armorion, Onde asas em debanda,

Levam ao céu lira e verve

flutuando em negra dança

 

 

Em cada rua um poeta, a cada puta o seu muro

Poeta, puta e monturo, em cada ruela incerta

Em cada buraco um músico, a cada soldado: caserna

A toda hora o seu canto, e brilhante a neve eterna

 

Visitem Armorion, onde todo dia é santo

Onde acalanto é poesia, a cada poeta o seu tanto

A cada padre uma aposta

e missas por ninharia

prelados fazem magia

Lá todos voam de costas

 

 

 

 

 

 

O CAMINHO PARA A BÉTULA

 

Sadoc se retirara para sua tenda.

E Alix veio a meu convite. Acho que falei. Ouçam.

 

“Devo lhe dizer uma coisa que tenho aqui, como direi?, entalada em minha garganta”. Alix sentou-se, não sem um sorriso de mofa, na almofada à minha frente. Ao fundo, mandara abrir a janela dando para as margens.

“Vai morar até o fim dos tempos neste barco? “. Tomou de uma fruta e cravou-lhe delicadas presas, o olhar curioso e maroto.

“ Sabe qual é a ironia maior daquele que procura ser o melhor no que faz? “. Disse como se não tivesse sido interrompido, “ não? Talvez? Não sabe? Bem, por isso a chamei para esta curta, ou assim espero…bem, curta e constrangedora entrevista.”

“Você descobriu que queria ser juiz…ou pretor, e agora não sabe como me dizer que toda sua poesia é uma merda?“.

Suas asas feminis espreguiçando-se roçaram o teto, lânguidas, seus seios se destacando contra a faixa de seda de busto, o rosto sorridente.

“Alguma coisa assim…trágica e patética assim “. Uma aragem gélida penetrou no camarote, me forçando a jogar uma manta sobre meus cotos sensíveis.

“O problema é que Balac é prisioneiro de Balac. Ele não caga mais, não trepa mais, só maravilha aos pacóvios. Todo o século se desmanchando, o Novo Estro, a Palavra de Ouro, os movimentos diversos, as modas de trovador que vêm e vão. Balac é o poeta do momento, cercado de outros tantos maravilhosos, cada um deles um gênio incontestável se saísse da órbita do decano. Mas não, nenhum deles, estes outros maravilhosos, me deixará.”

“O problema é que este Balac precisa que você saiba de algo: será rápido e o mais indolor que eu puder arranjar”.

Uma pequena lágrima começou a se formar em seu rosto e sua mão escorregou pela seda da almofada até a minha. Sua boca se abriu e eu tive certeza de que tentava impedir-me de falar.

“Não, nada assim tão simples“. Desvencilhei-me de sua mão e ri.

“Faremos o que for mais necessário e digno…e se sobrar energia, faremos do modo mais agradável esteticamente também”. Creio que agora eu ria, tristonho.

“Alix, eu já estive perdidamente apaixonado por você. Suspeito mesmo que ainda esteja e é só. Não falaremos mais disso, de modo a que me sobre alguma dignidade”. Alix agora chorava abertamente e em silêncio.

“É claro que você já sabia, ou pelo menos suspeitava, e é claro também que isso não modificaria em nada minha decisão de fazer-lhe tal comunicação. No mais, normalmente…é praxe em tais casos que um dos envolvidos se afaste, mas eu queria que você atentasse para o fato de que só acrescentaria uma nuança a mais ao ridículo. Gostaria que ficasse, portanto”.

“Balac, eu…sinto muito”. Novamente o gesto de me tocar a mão, desta vez interrompido a meio caminho. “Eu abriria o meu peito a faca, eu faria mesmo isso para não te magoar”.

“Perdão, já notou que ‘eu sinto muito’ e ‘meu peito a faca’ podem estar a caminho de se tornarem clichês mortais?”.

E levantei-me dali, arrastando-me para fora com o máximo de rapidez que podia, que se danasse a dignidade.

Eu caminhei no teu barco, ó deus

De popa a proa você não entendeu nada

As madeiras erradas, a decoração, o cômodo para seu coração

Cem mil milhas de espaço inaproveitado

Eu caminhei para nada

Eu caminhei para a névoa, solitária

E chorei pela ironia

Chorei por minha incapacidade

Chorei por meus filhos não nascidos

E eu tinha todo o espaço do mundo

Para me lamentar

 

Eu caminhei no barco do deus

com ele me entrevistei na sala púrpura

nada aconteceu…

Tudo isto é fábula,

meu diamante no meio da urze

Eu ainda aguardo o teu riso

Outra metade do meu poema

Palavra por mim esquecida.

 

ALIX DE BRISEIS

 

UM APÊNDICE

UMA TAVERNA

Também por Alix de Briseis

Balac. E Balac ainda tinha suas asas.

Era então Balac, o Risonho. E havia um Sadoc Sadoques também.

E um Issac, dito o Moço.

Eu servia então na taverna Ao copo e à Lida, (enquanto eles conversavam, eu me perdia em reminiscências e copos de vinho). Havia me despedido de Aram em Briseis e percebia em mim uma necessidade de me perder entre as gentes.

Era um tempo estranho. O ar era mais fino naqueles dias em Ardenca-Sobre-O-Mar.

À Terceira Hora de uma madrugada de Jaspe foram queimados um poeta e um camponês herético. Doze anos me separavam do meu Romance Azul e Carmim e me comprazer em parecer uma tola e encontrar agrado nisso não me parecia difícil.

Lembro com prazer as manhãs em que voltava das compras no mercado sobraçando ovos, chouriço e toucinho rançoso. Lembro de me levantar antes da aurora e me deitar somente em alta noite. Lembro de beliscões em meu traseiro. Lembro do taverneiro, que me ensinou que eu nada sabia sobre como ser estúpido é nada mais que o esperado, é nada mais que natural. Lembro de um bairro em que voar era a mesma coisa que pedir para vomitar e assim todos caminhavam. Lembro de um marítimo que estava engajado em um navio da família de Aram (e eu chorei).

Era uma época de incertezas. Mas, havia verdade.

Cada um tinha a sua é certo. Mas todos com a mesma e insana dose de certeza (a música cheirava à matemática nessa época e correta poesia saía da boca de prelados).

E havia Balac, Issac e Sadoc. Balac ainda tinha suas asas.

Balac, Issac e Sadoc, eu sabia com certo humor álacre, estavam conspirando com o século.

Não me dizia respeito, é claro (eu me afastara e eles respeitavam a minha escolha. Minha solidão).

E eu até mesmo ria à socapa, enquanto lhes servia mais vinho.

E que beberrões aqueles!

Uma constante nos textos da época é a reminiscência, o tempo melhor que já se foi ou então a espera. […] O poeta canta, e há ironia e medo no seu canto, a vida e a arte não são nada mais que reflexos. Consciente dos signos invertidos que utiliza, da linguagem cifrada especular com que tenta cinzelar a realidade e a decadência, a Lenta e digna decadência. Seria demais não lembrá-lo quando referimo-nos a estes tristes filhos da Escola de Armorion? […] …a assim chamada Série de Aram, uma cadeia de poemas e crônicas, escritas provavelmente entre ‘240 e ‘249, cobrindo temáticas as mais diversas, ligadas por um motivo comum: Aram. Provavelmente Aram de Tosques ou Aram da Ilha, advogado e político oriundo de uma das famílias mais antigas de Audiarda. Consta terem ambos, Alix e o citado, tido um relacionamento amoroso de juventude que terminou por imposições familiares. Muito embora Balac, em uma de suas Crônicas de Verão, tenha escrito que terminou porque simplesmente havia “Alix demais para Aram de menos”, o “que talvez tenha sido uma perda para a satisfação emocional e sexual da poeta, mas um grande ganho para a música de sua poesia”…

 

Conimbricensis, Jonas, in ASAS DOLORIDAS: UM ESTUDO SOBRE O MOVIMENTO DECADENTISTA, pg. 304, variorum, Armorion, Shaitani Livreiros, 12.597.