Uma História de Amor

When Love and Hate Collide - by hurricanekerrie - DEVIANTART
When Love and Hate Collide – by hurricanekerrie – DEVIANTART

O blog feminista de Selma Plá, durante muitos anos, foi hospedado na versão eletrônica da revista Tempo, editada pelo sempre combativo e combatido Nuno Enkil. Vale a pena dar uma conferida em seus artigos, nunca comuns, nunca banais. Refiro-me a Nuno e não a Selma.

Selma, conheci numa mesa de bar, apresentada por Rocco e Rowena, o casal maravilha. “Você vai amar a Selma”, disse-me Rowena, “não tem cabeça mais privilegiada, é engraçada, é dinâmica e olha, leva a sério, leva mesmo, as suas lutas”. Não me decepcionei, era tudo isso e mais.

Em nosso primeiro encontro discutimos. Selma me desancou sem pudores e sem pudores disse o que pensava de mim, que eu era um machista posando de “homem compreensivo” e pior, desonesto, intelectualmente falando. Não, desonesto intelectual e intelectual desonesto, na hipótese generosa de ser minha pessoa apta a ser considerada um intelectual, do que não tinha certeza. Não, mentia, tinha certeza sim, eu era uma pequena fraude. Aliás, já te conhecia de fama, de conversas com outras pessoas, mas principalmente do que me contou a tua ex, que eu até demorei a levar em conta, a acreditar, mas que agora te conhecendo, tudo  se confirma.

Nos encontramos outras vezes eu e Selma e, inicialmente, nossos conhecidos até apreciavam os nossos embates, depois se encheram, pasmos com a virulência. Dela, esclareço, pois eu não conseguia, simplesmente não conseguia responder a Selma, esmagado pela força de sua personalidade. Ela era ativa, incisiva, impiedosa e certeira. Não mirava no coração, mas nas entranhas.

No lançamento de seu terceiro livro, inicialmente recusou-me dedicatória mas, instada por amigos comuns, acabou por garatujar mais um insulto: “Para te dar outro afazer, além de ser condescendente com as mulheres. Na esperança, claro, de que você leia (é prá isso que serve a esperança, afinal). Sem carinho e sem afeto, Selma”.

Depois aconteceu o lançamento de sua própria revista, Feminices, Femina ou qualquer coisa assim. Intensamente acessada, intensamente discutida. Fez história.

E depois o filme, Sorriso Discreto que Terminou com um Aceno Amistoso, produzido pelo seu filho, o Geofroy. Elogiadíssmo, premiadíssimo e o que muito me impressionou, caiu no gosto do público. Um enredo original, com duas histórias correndo em paralelas contrárias. Uma do fim para o começo, narrado em primeira pessoa por uma louca. A segunda, linear, narrada pela mesma mulher, só que aparentemente dotada de sanidade mental. Os fatos focados eram diferentes em cada história, embora se tratasse da mesma pessoa. “É coisa pensada para dar nó na cabeça de despreparado”, me comentou certa vez a Rowena, já separada de Rocco.

Escrevi uma resenha elogiosa, focada sobretudo na trilha sonora composta por Marcos Visconti e a banda Capitão Temor. Selma me cobriu de impropérios quando de um encontro casual na exposição de Lúcia Tominaga. Tive o rosto arranhado, tal sua fúria. Permaneci calado. Minto, cheguei a ensaiar um tímido pedido de desculpas.

Em 2033, ou 34 não tenho bem certeza, ela morreu. Dois anos depois a segui. Estranhamente, saímos do Umbral na mesma época, mais de duas décadas depois, socorridos pela mesma equipe. Tivemos os mesmos falhanços e nos revezávamos nas costumeiras entrevistas com nossos conselheiros, até que por fim Selma teve permissão para voltar à carne, como se dizia por lá.

Sua encarnação como Patricia Anne Tsung não foi pior ou melhor do que a maioria espera ou recebe. Cresceu em família de classe média, formou-se e se tornou pesquisadora de certo renome na área de física de materiais. Casou, descasou, converteu-se ao catolicismo quando por volta dos quarenta e pariu tranquilamente seus dois filhos, dos quais eu fui o último. Não foi pior ou melhor do que a maioria das mães, acredito. Alegrou-se mesmo quando  me tornei padre, não fez drama quando troquei uma carreira brilhante de teólogo pelo casamento com Maurício, aliás, Rowena. Adotamos a pequena Mbeke, aliás, Rocco, e mamãe alegremente consentiu em ser chamada de vovó.

A enterrei em 2138 e voltei mais tarde ao cemitério, subornei dois funcionários e mijei intensa e prazerosamente sobre sua cova.

6 comentários em “Uma História de Amor”

  1. Não fossem as datas, a realidade teria me atropelado – se bem que talvez as datas medissem perfeitamente a realidade, aquela comum, pequena na qual eu vivo. Gostei deveras…

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