Sobre a razão e a fé e sobre a Grande Viagem. Ah, e onde também se fala sobre um jogral de minhas relações

Familiar 2 – by artursadlos – DeviantArt

A verdade pode ser conhecida pela razão e também pela fé. Da primeira maneira trata-se de uma prospecção do espírito, enquanto a segunda é uma aventura arriscada. A primeira maneira foi preconizada por diletos varões. Guilherme de Ockham me vem à mente mas, principalmente Tomás de Aquino. A segunda maneira também, pelo Aquinate, mas a parte do arriscado devemos mais a Søren Aabye Kierkegaard, com sua concepção da fé como um salto rumo ao desconhecido.

Kierkegaard era dinamarquês e seu sobrenome significa cemitério. Já Aquino é só um lugar.

Aquino era de família aristocrática, enquanto Kierkegaard era um burguês, de família burguesa e era um sofredor profissional.

E temos também Mestre Eckhart, que conversava diretamente com Deus, assim como Juan de la Cruz e Santa Teresa de Ávila, que descendia de judeus como Tomás de Torquemada, um inquisidor que dedicou sua vida a queimar pessoas. Nenhum dos dois que eu saiba, Teresa também, se preocupava com a verdade. Eckhart por tê-la de graça e pela graça, Torquemada por ter o espírito tão cheio de soberba quanto um pároco tem o estômago repleto (falo de párocos antigos; os modernos tem a internet e automóvel). Teresa e Juan sofreram demais para se preocupar com o tempo em que viviam. Natural, privavam com Deus, o atemporal. Teresa significa “caçadora”.

O ano passado foi difícil para mim. Desagradavelmente (restrospectivamente, coisa para se repensar agora). Ano passado conheci a uma mulher vestida de azul, de rosto sempre sorridente e dada a conversas vagarosas. Suspeito que me levou o pai. Me deu algum susto. Minha tia Noêmia viu também à senhora de azul. Na verdade, uma grande fileira de tias e tios a conheceu. Uma enorme fieira cheia de nós, como fieira de pião. Um nó para cada vida, de modo que é especial a última hora de cada vida que a mulher de azul tomou. Mas eu falava da verdade.

Eu falava da verdade mas deveria falar da minha relação com a verdade. Esclareço, nunca foi muito boa. A fé, por alguma razão, nunca me foi acessível. Não que não tenha tentado, mas o Senhor Deus nunca me facilitou as coisas. Já a razão, com esta me dei melhor. Sempre.

Constrangedor como eu nunca consegui seguir uma missa (sou de uma longa tradição de católicos relapsos que nunca de fato levaram a sério admoestações  de padres e, aliás, nunca gostaram muito de padres. Que me lembre, meu avô paterno evitava entrar em igrejas e nas festas religiosas chegava sempre depois da missa e ficava do lado de fora, o chapéu às costas, apreciando.

Minha avó era prima de meu avô. Eu nunca entendi os seus banhos rituais de sexta-feira.

Também meu avô materno não dedicava grande respeito à “Santa Madre”. Minhas avós não sei. Talvez orassem).

Certo, saí do parêntesis. Voltemos à verdade.

Friedrich Wilhelm Nietzsche não acreditava na verdade e tinha ojeriza à metafísica. No entanto, encontrei o seu “Assim Falava Zaratustra” em uma banca de jornal aos vinte anos e, vejam só, sem ter qualquer experiência prévia com o indizível (exceto Cego Aderaldo e Zé Limeira e Leminski) o apreendi de imediato. Daí que entendi que a verdade tinha a ver com a poesia.

De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.

Isto é Nietzsche no seu “Zaratustra”.

Para apreender a verdade pela via poética temos que ter como pena um osso nosso e um sangue nosso. Quanto mais vermelho, melhor. Foi o que entendi e tentei levar à prática, não obstante meu sangue fosse rosado.

E então meu pai morreu em março de 2020 e não havia nenhuma verdade ali, somente um homem de face emaciada, magra e eu não o conhecia mais. Todo nós, filhos e filhas e netos rodeamos ao caixão. E se mostrou um caixão pesado quando eu peguei a alça da frente, à esquerda. E não havia nenhuma grandeza ali, somente a falta dele que tomou o lugar de seu corpo físico, de seu riso, de sua bondade.

Minha mãe, já dele separada, chorou.

Se havia alguma grandeza era pretérita, quando ele chegava à casa pela manhã, vindo de um trabalho noturno estafante e trazia queijo e pão fresco. De quando ele caminhou comigo num dia gélido, minha mão na sua mão. De quando ele me trouxe um livro que ele jamais leria, mas respeitava, pois que meu pai respeitava aos livros.

Se havia alguma verdade ali, era a da senhora de azul que levou de modo igual aos Tomases, o de Aquino e o Torquemada, a Teresa e a João e à minha tia Noêmia.

Meu pai lá, pequenino, finito e belo; como é bela a vida. Meu pai lá, cercado de flores murchas. Sinceramente (posso ser sincero), senti que a razão, a fé e a verdade não significavam nada ante à vida. E a vida é trabalho perpétuo.

Duas vezes se morre, primeiro na carne, depois no nome, escreveu Manuel Bandeira.

Acho que é tudo o que eu tenho a dizer sobre meu pai.

eis que

Um dia você está no alto Solimões e no outro você está morrendo em uma enfermaria. Tudo isto que está aqui, na enfermaria, não tem sentido. Só o alto Solimões, somente. O caso é que você não recebe visitas do modo correto, num quarto particular. Tudo isto aqui deveria ser diferente. Faria, acho, acredito, acho, suponho. Uma grande diferença. Sem contar que nem existe o alto Solimões. Só Janaína que é uma porca que pensa que é camelo e que nem está aqui.

É um bom começo. Toda paramentada com calça preta de tecido sintético, uns óculos em meia-lua, a asquerosa enfermeira catolicona, a miserável que anda de cama em cama fingindo que dá atenção pra gente, usando aqueles crocks horríveis, verde-vômito.

Os celulares em perpétua consulta. O pessoal médico twita. O Twiter. Um dracma. Como é que se fala? Uma? Um dracma por seus pensamentos mocinha de couro sintético vermelho-hemorragia passando a mão nos zigomas do velho de cabelo branco e aquela baba viscosa caindo por uma fenda que atravessa o colchão e vai dar na planta esquisita, no vaso, na recepção.

Só mais um dia você está no alto Solimões.

Mais lá em cima, no quarto particular este autor onisciente pode captar as passadas covardes de um rabino em começo de carreira, ainda na fase de visitar frigoríficos e fazendas para examinar e certificar o rango kasher. O fantasma silente do meu lado, ôs carái da porra, e o Jornal Nacional. Tô te vigiando filha-da-puta, tô te vendo, corno de terno na bancada e aquela moça lá no fundo fingindo que tá prestando atenção na tela do computador. A japonesa médica usa calcinhas cavadas mas eu ainda penso em Janaína e na casa da rua Aurora, com seu jardinzinho decadente que só fica legal em dias frios, quando a gente pode entrar e se perder no universo paralelo logo atrás do mamoeiro onde pasta o cavalo de sexta-feira.

Us carái da porra. O cabelinho nas ventas da moça da limpeza me parece tão terno, eu quase choro. Pôtaquemepariu, tão colocando o que no meu bagulho de soro? O capitão Ahab mergulhando com a baleia e eu junto de tempos em tempos. Desço lá no fundo, dendalei. Suzane Roussi. Pombas verdes iguais, da cor exata dos crocks da biscate catolicona, enfermática. Dúctil e dócil. Dulcíssima flor-de-bananeira.

Eu quero um feicebúqui só pra mim. Um zatzap, uma nave-caça boiando na atmosfera do planeta. Anotou? Cornófilos! Pombos-giros. Vou tomar até o último cordeiro de Deus! Vejo, prevejo, faço. Sozinhão, mas atento. Pútico.

Eis que.

Ói o moço da Samu. Ói a luz.

Eis que.

“Tá me ouvindo?”. A catolicona bota um jeitão atento no rosto e sorri pra…pra japonesa, a médica. “Ouve não, doutora…delira, fala umas besteiras…”

“Tô falando com ele. Se importa?”. Tomou no cú cristão renovado, né biscate? Me ajeito na cama e a porra da agulha de silicone me fode o braço. “O senhor me ouve?”. Olho. Jogo meu sorriso pro coração-de-Gézuiss estampado, soltando fumaça, na bata azul dela.

“Ouço. Tem umas pirilâmpsias me aporrinhando, mas tão bem…as oiças. Brigadim.”

“Num falei?”

“Senhor, eu preciso que você me confirme, sabe?…que me ouve, tá bem?”

O paralelepípedo gordo, lá embaixo na rua. Sinto ele. Sinto a coruja planando, cuidando do ninho dela. Sinto o movimento dos mortos dando voltas no quadrado besta da enfermaria, os putos. O gosto das balas de menta, o cheiro de bucetas jovens, o desinfetante sinto também, meu cachorro que já morreu há vinte anos.

“Eu ouço. Fácil ouvir você, toda grávida de duas semanas. Ouço teu bisavô, o Takehide, véi chato da porra”. O bagúi no meu soro!

“Filho-da-puta! Cumé que soltou essa agora?”

“Doutora…?”

Janaína, minha porca.

“Senhor?”. Só mais um dia você está no alto Solimões.

Os trinta e seis tzadkim examinando uma prancheta, como uma junta médica. Corretos, plácidos. E eu sei. Sinto o cheiro da aurora, de mato fresco.

“diminui a dose. Pela metade. Quem que entra agora?”

Eu queria visitar frigoríficos! Ir bem bem lá na graxaria e abençoar tudaquilo, fazer virar rango kasher. Ácido oleico animal. Escopolamina. Chá-de-lírio. A seda dos quimonos, o congresso.

Eis que.

Tengo-lengo-tengo, lengo-tengo, lengo-tengo.

Eis que.

Espelho partido, deusa, crise. Eu coloco o hospital todo no meu coração gris, de velho. Abençoo tudim e rio para a minha médica gárula, lindamente grávida. Abençoo suas dobras epicânticas pronunciadas, sua calcinha branca. Seu feto me diz oi. Abençoo o puto também.

Abençoo o bisturi de Deus.

Me comovo.

“Takehide amava você, mas amava mais a cachorrinha perneta, a Lilica. E amava mais o nascer do sol.”

“Tô falando que é doido…”

“Caralho…”

Minha médica linda chocada, vai pra outra cama, a do velho de cabeça branca.

O mundo é um moinho. Vai si fudê, Cartola! O congresso dos deuses vai começar daquiapouquim, reservaram o corredor. E eu ligo? Ligo não, bobão! Tô é longe. Bobinhão, bêstico, enrolado neste cobertor de merda. Me identifico, me mapeio.

Eis que.

Fui lá longe e inventariei a cidade, trouxe novidades mundanas, trouxe uns tóxicos novos, interessantes, mais cavalheirescos que o bagúi pingando no soro, mais.

Eu tenho um passado. Um passado bôbico, subindo a torre do reator de fragmentação lá na refinaria e descendo pelas escadas de bombeiro. As moças tão boazinhas, concordando em ficarem nuas comigo, também nu. A magia de Abra-Melin, o questionário do pós-morte que eu um dia sonhei e não me lembrava mas que agora voltou na memória. As madrugadas filhas-de-umas-putas geladas, o cinema de bairro, o Startrek, a Academia de Ciências de Vulcano, o tenente Yonoi, a pomba voando da mão do replicante, Thelonious Monk e Roberto Carlos às duas da tarde gelada de junho.

Dormito.

Lembro dela e fico de pau duro. O bagúi de novo, no soro. Engraçado. Dá paudurecença. Tesãozim tão bem-vindo essaí, de lembrar dela. Meu deus. Deuzim meu, os peitos tão cheirosos! Cumé que mulher tem peito assim, tão cheiroso, seivoso, de gosto marrom, de gosto rosado, de gosto preto às vezes! E a curva da bunda, planante, como uma tartaruga cósmica planando em derredor da pedra. A bunda. Todo um mistério de bunda para que você aperte. Viu? Vi eu. Coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito, né Milton, o Nascimento?

Oswaldo cantando Uno. Uno busca lleno de esperanzas, El camino que los sueños, Prometieron a sus ânsias. Tu era bom, cara! Yamandú gosto também. E o gosto áspero da língua, a liturgia dela, pessoal, o derramar. E o Steely Dan? Gézuiss, Ed Mota que me apresentou. Rikki don’t lose that number. E Yukio Mishima? E o roteiro cinematográfico de Rio Pequeno, dos Tonicos em confabulações com os Tinocos?

E lembro dela. Mania besta daquele rosto o de rir, capturando cada momentim da manhã.

O enfermeiro da manhã enfia o troço no meu pinto e pergunta se quero mijar. Besta! Quero é me perder na BR 3, com o tal do Jesus Cristo feito em aço. Quero é ouvir a abertura da novela Pigmaleão setenta, cantada pelas Umas e Outras, bem anos setenta, sketsch, feito os filmes italianos dos setenta, as trilhas de Michel, o Legrand, Crow, o Magnífico.

Me basto.

Quero é Caetano e a Luna LLena. La luna me está mirando, Yo no sé lo que me ve, Yo tengo la ropa limpia, Ayer tarde la lave. Quero é quebra-queixo, quindim, galinha-ao-molho-pardo, o sarapatel quântico, o mocotó-de- Schrödinger.

Eis que.

Terminei por conta de que há que se terminar. O mapeamento do caos.

Só mais um dia você está no alto Solimões.

Eis que.

Um conto de fogueira

 

Bastidores de o Sétimo Selo. Na fotografia: o diretor Ingmar Bergman e Bengt Ekerot, ator que fez o papel da personagem Morte.

Meu pai gostava de nos amedrontar. Campeoníssimo contador de histórias, sabia os motes, os traquejos, os jeitos todos de incomodar ao ouvinte.

Xerazadi (ou Sherajadzi, ou sherazade, se preferis o étimo gringo) era amadora. O pai não, era profissional.

E eis que numa fogueira de São João estávamos eu, meu pai e Orlando, o sujeito que morava com a japonesa, a Tapujija, que era espancada frequentemente.

Bem, meu pai.

Orlando contou sua história de fogueira. Insossa, no meu entender de sommelier de contos e causos.

Meu pai então contou:

Era uma noite de São João e havia uma fogueira e o meu pai (que era meu avô, vejam bem) ali folgava com sua cachaça, seu cigarro de palha e com seus amigos. E a noite avançava e meu avô e amigos contavam causos, diziam cousas, afrontavam ao desconhecido, faziam piadas sobre Deus, o Fado e o Demônio.

E tanto, que começaram a se enroscar num medo visguento, desses que começam no baixo ventre, sobem até coração e viram pedra e terror.

Ora, todos sabem e todos temem. Se o mundo não é feito de sábios, também não é necessidade seja ele feito de idiotas.

E eis que os amigos começaram a abandonar a fogueira, transidos num medo gelado. Menos meu pai (que era meu avô), que arreliava, zombando heregemente, brincante.

E aí, fatal, se achegou na roda o moço ruço, loirado, de bigode ralo, cheirando a perfume forte.

E os amigos de meu avô foram deixando a fogueira, um a um, sem saberem por que, por donde, por causo de que.

E ficou meu pai (já sabem, o avô meu) e o moço.

E meu pai, contava o meu pai, tocava uma flauta pé-de-bode, por distração sua e gozo.

E a noite ficou pesada.

E o moço pedia sempre “toca mais uma pra nóis” e meu avô (que era pai do meu pai que contava esta história) tocava e tocava e o moço sempre mais insistente, “toca uma aí pra nóis”, com uma voz cada vez mais rouca, e já meu avô (que era o pai do meu pai que contava a história) percebia que estava só com o moço, que seus amigos se afastavam e saíam, quase em fuga, não, em fuga mesmo.

Toca mais uma aí pra gente”, zombava o moço loiro e meu avô (e agora sou eu que conto o conto, assumindo a voz de meu pai) começou a perceber o cheiro, a catinga diabólica que saía do moço e depois as unhas, pretas, que escapavam pelas alpercatas e a podridão de que se faziam os dentes do coisa-ruim.

Meu pai chegava até este ponto para acrescentar: ora veja você que meu pai (que era meu avô) estava numa sinuca, metido até os cornos com o Pedro Botelho, o Dianho, o Fuça-e-roça. O Cão-ciúme.

Mas meu pai era meu pai, pontuou meu pai e riu para mim. E me senti aliviado, pois que meu pai era destro e esperto e solerte e sempre trazia a salavação na algibeira.

 E então meu pai (tão sabendo que é meu avô, pois não?), olhou pro demo, zombando e babando bem perto de seu rosto e pedindo “toca mais uma pra nóis” e decidiu que aquele era um dia para se desejar viver mais um dia, sem contar que ele nunca gostou de sujeito impertinente, maldosão, deseducado. Meu pai então (que era meu avô) botou uma dose caprichada da cachaça no seu copo, pensou na vida, bebeu e tocou na sua flauta um hino a Nossa Senhora que Marcionília, sua mãe, lhe cantava nas noites cósmicas de estrelas incandescentes que haviam então.

E coisas aconteceram. Contou meu pai que a noite ficou serena, como se a própria Maria, a virgem ali estivesse, em corpo, prosa e verso. Como se ela mesma não tivesse vindo só, mas com o Jesus menino na cacunda, assim como no Sétimo Selo de Ingmar Bergman, na visão do simples, do acrobata Jof.

“Se é p’á tocar essa coisa eu vou é m’embora”, disse o pata-rachada e o ar se encheu de cheiros diversos e medonhos após a já esperada explosão de chamas e ódio que antecede às derrocadas do Cramulhão.

Estamos falando de coisas antigas e provadas aqui e clássicos eram meu pai e avô, aleluia!

E eis que.

Orlando, o sujeito que espancava a japonesa, a Tapujija, ponderou e riu com a história de meu pai e deu a mão à palmatória, com alguma cachaça no intermédio.

Eu? Eu fui pra cama, orgulhoso de meu pai, temeroso do Demonho e mui contente com a intervenção de Maria.

Desde então, continuo herege, mas respeito à santa. A ela e a Santa Teresa de Ávila, que me guarda e protege.

Finalmente, a entrevista do Corintiano Voador a Satanás (curta e pouco informativa)

shaitan

 

Sessenta mil homicídios por ano grassaram aqui na terra.

Brasil, vos amo de tesão sádico.

Satanás: Mas, vede, nobre Corintiano Voador, não serão os próprios criminosos se matando, bestas-feras que são?

Sessenta mil homicídios por ano.

Corintiano Voador: Devo discordar, valoroso Príncipe Imundo das Trevas. Creio ser tão somente o resultado de uma classe social humilhando e executando aos recalcitrantes de outra classe social. Uma questão do tamanho do porrete à disposição. Quem tiver os melhores capitães-do-mato…

Satanás: Mas então…dizeis que temos luta de classes?

Corintiano Voador: Mas então…e portanto…assim é.

Satanás: Mas quem mata quem?

Corintiano Voador (enxugando uma teimosa lágrima): E sabeis, não sabeis? Que és, que estás obsoleto? Perdão, não respondi a vossa pergunta.

Não é?

São os tempos.

 

A PRIMEIRA ENTREVISTA DE SELMA PLÁ FEITA APÓS SUA MORTE

TÚNEL-2

ATO I

 

Sala de entrevista – hora incerta

 

I

 

─ Oi, é Selma, não é? ─ Senhora de seus trinta anos e pele escuríssima, a simpática conselheira remexeu em alguns papéis em sua mesa.

Lá fora caia uma chuva fina e constante molhando o jardim de contos-de-fada da sede.

─ É. Selma.

A conselheira colocou duas mãos em seu rosto jovial e sorridente.

─ Nome completo, por favor.

─ Pensei que estivesse tudo aí, cês devem ter arquivos né não?

A conselheira acenou para um aparelho ao lado.

─ Só para registro. Formalidades, querida.

E depois de algum tempo de expressão de saco cheio.

─ Burocracia. Até no pós-morte a chatice continua… ─ e se recompondo.

─ Tá. Selma Regina Monteiro Plá.

─ Melhor…vamos lá…─ e passou a ditar para o aparelho. ─ Selma, paciente recém-saída do Umbral. Fase um de readaptação.

─ Escuta, já que eu tô morta, será que não dava para agendar uma visita aí com o Beja?

Expressão de interrogação no rosto da conselheira.

─ Benjamin Rosenblatt.

─ Ah, desculpe, seu marido no mundo da carne. Desculpe, mas não. Outra jurisdição. Talvez com tempo, consigamos negociar com o pessoal judeu, mas não é garantido.

─ E já que começamos oficialmente as sessões, por favor me chame de Jáira. ─ E Jáira sorriu, balançando a cabeça.

─ Vamos lá, o que eu espero de você? ─ As mãos continuavam a se apoiar nos maxilares.

E elevou olhos zombeteiros como se procurasse uma recordação.

─ Quero um relato dos seus tempos no Umbral. Do jeito que quiser e levando o tempo que você quiser e no estilo que você quiser.

 

 

 

II

 

“Posso fumar?” Um cigarro nanocut se materializou entre os dedos de Selma que o deixou cair, o recolheu e levou à boca e uma brasa vinda de lugar nenhum apareceu na ponta e ela deu sua primeira tragada em anos.

“Rapaz…!!!” foi só o que conseguiu articular.”

─  E?

“Bem. Eu de repente estava lá, na Cidade, na casa em lugar nenhum que eu não sabia que ficava em lugar nenhum. Era sempre dia, ou quase sempre, porque as vezes tinha noites também, mas sempre, sempre nublado. Sol, nem pensar. Era só aquela coisa da casa, e eu dentro da casa, de vez em quando saía pra fora, mas no resto, na maior parte do tempo era só a casa.

E como eu dormia, meu deus, todo o tempo. Casa, andar pela casa um tempo e depois dormir, dormir e todo o tempo não tinha ninguém ali, mas eu sabia que tinha um mundo lá fora. Só não me interessava por ele.”

─ Nunca estranhou aquela solidão toda e a casa e todo o resto?

“Não. Era só a casa e eu não estranhava nada. ”

─ Entendo. Fome, medo, vontade de ir ao banheiro?

“Vontade de cagar?” Selma provocou. “Não. E nem fome e nem sede e nem sequer apreensão. Eu te disse, entorpecida.”

“Não sei quanto tempo durou esta fase. Me pareceram anos. Mas, gradativamente foi me dando no saco e eu comecei a sair para o quintal da casa…”

─ Havia um quintal?

“Havia. E uma rua assim bem calma. Caralho!, tinha que ser calma. Não tinha um puto ali.”

─ Você estava só. ─ E era uma constatação e não uma pergunta.

“Só e não me tocava que estava só. Eu acho que a palavra nem cabia ali: solidão. Não tinha nada.

E os dias vinham e iam (sei. Falei que só tinha uma ou outra noite, mas os dias iam e viam, isto eu sabia).”

Jáira estimulou-a a continuar.

“E então um dia eu desci pela rua defronte à casa e entrei nas avenidas e conheci à Cidade. Foi num dia como qualquer outro, nenhuma diferença.

E eu andei pela Cidade e havia lá aquelas coisas todas de uma cidade. As lojas, os restaurantes, tudo funcionando.”

─ Funcionando como?

“Só funcionando. Não me pergunte como, só sei que eu sabia. Mas era estranho. Você entrava num restaurante e havia comida ainda fumegante sobre a mesa, entrava numa loja e estavam lá os mostruários, todos limpos e…funcionais. Só não havia pessoas. Parecia que todas tinham acabado de sair, sei lá, pruma mijada ou para outro cômodo.”

─ Solidão?

“Não, só saco cheio. E dali eu peguei outra rua e depois mais outra e acabei na rua principal.”

─ Rua principal?

“Olha, não enche. Era a rua principal, tá bem? E aí, e foi aí que eu vi os ônibus, lotados de gente e os carros com insulfilm pretos, pretíssimos e você nem via quem tava dentro. Mas o que chamava a atenção eram os ônibus. Massudos, só com uma entrada, na frente, pintados em faixas de amarelo e azul e prata. E tinha aquele povo todo dentro dele, ninguém de pé, só tinha gente sentada. E eles olhavam pra mim e pareciam que tavam indo pra algum lugar (bem, certamente que estavam indo pralgum lugar).”

─ O que sentia quando viu aos ônibus?

“Era estranho, isto eu posso dizer. Pareciam familiares, como alguma coisa do passado. Era olhar pra eles e eu sentia uma infinidade de reminiscências, não lembranças completas, só flashes. Mas eram intensos.”

─ E mais ninguém fora os passageiros dos ônibus?

“Isso veio depois. Eu continuei a caminhar e cheguei no centro da Cidade e ali as coisas começaram a ficar meio malucas. Os prédios ficaram maiores e eu tive certeza de que não conseguiria mais voltar para a casa. Então, continuei andando.”

─ Me fale das sensações táteis, auditivas, dos cheiros.

“Hein? Sei lá. Eu ouvia música conforme passava por um bar ou por uma loja. Velhos standards dos anos trinta e quarenta. Jazz, sambas antigos, peças de música de câmara que quase dava para reconhecer mas eu não reconhecia.”

─ memórias fantasmas recorrentes, é muito comum.

“Como é?”

─ Continue, por favor.

“Tá, e havia os cheiros: comida barata de bar, perfumes, asfalto queimado. E as paredes dos prédios pareciam ser todas feitas de tijolos antigos, desses de olaria, antigos, grandes e quando eu chegava mais perto parecia que eram cada vez mais intrincados, complexos. Eu acho que poderia ficar horas só olhando pra uma daquelas paredes.

E aí me veio aquela porrada no peito, parecia um raio, só que sólido. Um soco bem no meio dos cornos e aí caí de bunda no meio do asfalto e me veio aquela certeza: eu tô morta, caralho!”

Longos minutos de tempo pós-morte depois.

“Morta.

O asfalto estava frio e gelou minha bunda e depois começou a gelar minhas pernas. E pela primeira vez eu tive, eu pensei, eu tive uma bruta vontade de mijar.”

─ muito comum, não se preocupe. Uma reação natural de autodefesa, um refúgio em necessidades naturais de um corpo físico.

“Você pode tomar no seu cu, também, se sentir alguma necessidade de se refugiar em necessidades naturais de um corpo físico.”

Jáira riu.

─ Calma. Desculpe pelo pedantismo. ─ Manteve-se ereta, estimulando, sem forçar a que continuasse.

Selma suspirou e desejou uma grande copo de conhaque para acalmar os nervos. Jáira se manteve impassível e a mágica do cigarro não aconteceu.

“Biscate!”

Jáira continuou impassível, embora ainda solícita.

“Tá. Então eu levantei e olhei pro lado, pra todos os lados e fiquei puta e falei assim comigo mesma ‘caralho, Selma, cê não tá vendo? Você morreu e tudo issaí em volta são só projeções mentais. As porras das merdas dos caralhos de suas projeções mentais. E não são nem originais, só muito bregas.”

─ E por que seriam projeções mentais?

“Porque, ô biscate, se a realidade fosse daquele jeito era uma porra de uma realidade de merda!”

─ Só uma curiosidade, você por acaso leu alguma literatura espírita quando viva? ─ Jáira estava ligeiramente zombeteira.

“Que literatura espírita?”

Jáira se limitou a manter um sorriso neutro.

“Eu sempre me perguntei…quer dizer…o sujeito era escritor quando era vivo e quando morre só faz vomitar platitudes? Um português de merda. Sabe, eu li uma vez uma senhora que escrevia, não ela, mas uma alma destas aí, desencarnadas. Era uma ghost writer a tal da senhora. E aí ela está aqui no além, a desencarnada escritora e encontra um menininho negro ali com ela e ela comenta ‘que bom que ele está aqui e não mais na sua tribo de antropófagos’. E ‘que bom que ele está evoluindo’ e mais umas merdas deste tipo. Sinceramente! Antropofagia? Que tipo de antropologia de merda que tem aqui no além? Antropofagia? E o menininho era africano. Antropofagia na África?”

─ Estar aqui não significa que muita coisa mudou. Se você era um medíocre na carne vai continuar um medíocre aqui.

“Certo. Então fica assim: eu não li tanto assim de literatura espírita. Provavelmente, não tenho certeza mas aposto, li muito mais mangás japoneses.”

Jáira riu, gostosamente.

─ Sabe, gosto de você.

 

III

 

E depois de algum tempo.

─ Acho que é só por hoje. Pode voltar para o seu alojamento. Deseja alguma coisa, há algo que eu possa fazer por você?

─ Rola uma cachaça ou uma bagana espiritual?

Jáira a acompanhou até a porta.

─ Temos uma cerveja fluidizada, serve?

 

Elegia

fim-de-caso-amores-adeus

Eu devo isto a meu pai, a minha mãe, a meus amigos.

Não podia e não posso deixar passar impune. Eu estava lá, nos anos oitenta, no ABC, e era parte de tudo.

Lá eu conheci ao padre belga, ao músico, ao primeiro viado e a primeira lésbica que saíram à luz e se tornaram meus amigos, ao pequeno estelionatário, ao operário, ao pastor presbiteriano, ao poeta marginal, ao balconista filosófico, à feminista que ousava ser feminista, ao peão de obra e de chão de fábrica, ao anglicano. A todas as gentes que eram do bem, que lutavam e não tinham vergonha de lutar. Eu próprio era do lugar e minhas mãos eram feitas de pedra.

Era um tempo de descoberta e as boas gentes lutavam e tinham tempo para o devaneio, a música e conseguiam ouvir o zum do tempo.

Não conheci pessoalmente Marisa Letícia Lula da Silva, mas é como se a conhecesse.

E sinto falta dela como sinto falta de outro tempo. Menos odiento e mais belo. Sei somente que ela nos deixou.

E já sinto falta de seu pastorado, curto e maravilhoso.

E é isso

IDENTIDADES II – outro roteiro

emigrantes_1936

  1. Exterior – Dia – Um hospital visto do alto. O dia não amanheceu por completo. Traveling em torno do prédio.

MÚSICA: Perpetuum Mobile, de Simon Jeffes e Penguin Cafe Orchestra. No início de cada capítulo da série sempre se usará, na medida do possível, música sinuosa.

TÍTULO E CRÉDITOS abrem-se com os nomes dos atores surgindo aleatoriamente, descendo o subindo a tela, vagarosamente e por fim sumindo. A panorâmica do hospital  se estende e a câmera começa a se afastar. Vê-se uma ambulância chegando. A música para, declinando, tornando-se lentamente inaudível.

  1. Interior – Manhã? – Um quarto despretensioso, pequeno. Um computador em uma mesa, alguns livros espalhados. Um jovem de cerca de vinte anos, negro, bonito, dormindo.
  1. Interior – O dia nascendo. Um apartamento arejado, com poucos móveis, espartano. A luz que se filtra de uma janela ilumina uma mulher de seus cinquenta anos, magra, leve, interessante, vamos dizer “branca”, com o olhar perdido em uma tela de computador. Selma Plá. Um suspiro longo, intenso.

FADE OUT para:

O nome da série, IDENTIDADES, aparece na escuridão.

MÚSICA: O trecho do tango de O último Tango de Vila Parisi, de Gilberto Mendes.

FADE IN para:

  1. Exterior – Outra ambulância. Sirenes estridentes. Cortando o trânsito já quase parado. A música pára em diminuendo.

CORTA para:

  1. Interior – O jovem negro acorda com o toque de seu celular.

CORTA para:

  1. Close no rosto da mulher ao computador.

SELMA PLÁ

Merda!

CORTA para:

  1. Corredor do hospital, cheio de macas. Os doentes amontoados e funcionários se esgueirando entre eles. Uma cacofonia geral. Em uma das macas, Vicente, o mendigo, é examinado por uma jovem médica. Negro, com cabelos carapinhos branquíssimos e longos se espalhando em todas as direções. Do mesmo modo a barba, de profeta louco. Ele parece calmo, quase divertido. A câmera começa a enquadrar Vicente, iniciando uma lenta aproximação. Diversos planos do mesmo local sucedem-se, sempre intercalados pelo plano da câmera aproximando-se de Vicente.
    • Uma mulher idosa conversa com uma adolescente sentada junto a sua maca. que lhe acaricia os cabelos.

MULHER IDOSA

A enfermeira disse que tu veio me vê ontem…

  • Uma enfermeira consulta seu celular, aparentemente alheia aos pacientes a seu redor.
  • Policiais conduzem um jovem algemado, com muitos hematomas pelo rosto.
  • Uma faxineira passa um esfregão no chão, recolhendo o que parece vômito. Pára, retira um celular do bolso do uniforme e confere, irritada, uma chamada que decide não atender.
  1. A câmera se aproxima cada vez mais de Vicente. A cacofonia começa diminuir, como se alguém estivesse pressionado uma tecla de volume. Finalmente, um close. Não se ouve nenhum som mais.
  1. Câmera subjetiva do ponto de vista de Vicente. Ele vê um operador de câmera e um cabista conduzindo um ponto de luz e uma estagiária segurando um rebatedor.
  1. Câmera focando Vicente. Ele começa a sorrir.

CORTE para:

  1. Outra ala do hospital. A ala nobre, onde os ricos podem morrer confortavelmente. Uma sala de recepção íntima, decorada com móveis de grife, plantas. Sem televisores, mas com wi-fi. Em um sofá, uma mulher idosa, cabelos totalmente brancos e curtos. Magra e elegante, responde às perguntas de uma solícita e educada funcionária, vestindo um elegante uniforme, com um lenço ao pescoço. O lugar e a funcionária parecem ser detalhes de um mesmo cenário: limpo, fresco e matinal. A mulher idosa, entretanto, dá uma ideia contrária. Como se sua dor não se adaptasse ao local. E aparenta estar esgotada. Flora.

MUSICA: Lentamente, começa a tomar forma o segundo movimento de Caduceu, de Marcos Visconti. Os violoncelos em glissando, tocados tão debilmente, que se ouvem às perguntas da funcionária.

FUNCIONÁRIA

Ele já teve outras crises como esta? Senhora?

FLORA

Como? Desculpe…

FUNCIONÁRIA

Eu tenho que fazer uma nova ficha. Por favor, ele já teve antes uma crise como esta?

FLORA

Só quando quase morreu. Ano passado, mas não foi neste hospital…desculpe, estou meio…desculpe…

A música pára. CORTA para:

  1. Câmera subjetiva de Caio, o jovem negro que dormia. O interior de um ônibus lotado. Duas jovens ao lado e acima conversam banalidades. Ao lado da janela uma outra jovem permanece alheia, fones de ouvido ligados a um telefone celular. Ela cantarola, desafinada, o que parece um hino religioso.
  1. Close no rosto de CAIO. Subitamente ele se levanta e câmera foca seu peito e depois o banco vazio conforme ele sai.

CORTA para:

  1. Vicente, segurando o pedestal com o soro ligado a seu braço direito, caminha pelo hospital, seguido pela câmera. Ele caminha, para, volta-se para trás, dá uma volta em torno de si mesmo, sempre rindo, como uma criança que descobriu um brinquedo novo.

MÚSICA: Palhaço, de Egberto Gismonti começa a ser ouvido.  Vicente se movimenta como se ao ritmo da música.

CORTA para:

  1. Caio, na recepção do hospital, conversa com a atendente. Ouve-se o nome de Vicente.

CORTA para:

  1. Apartamento de Selma Plá, atendendo ao celular, se confundindo com as teclas, se aproximando da janela para melhor visualizar à tela.

SELMA PLÁ

…sei, olha, já tô indo prá aí (pausa)…certo (pausa)…certo, fala prá ela que eu já tô indo.

CORTA para:

  1. Vicente saindo da ala pobre do hospital. Estranhamente, parece ser ignorado por todos a sua volta. Atravessa um pátio de estacionamento de ambulâncias e entra em outra ala, vai até um elevador, entra. De frente, movimenta os lábios para um “tchau” sorridente e inaudível.
  1. Câmera subjetiva de Vicente mostra a mesma equipe de filmagem. As portas do elevador se fecham e a música vai lentamente declinando.

CORTA para:

  1. SELMA PLÁ dirigindo. Tensa.

CORTA para:

  1. Caio, perdido, procura Vicente pelos corredores do hospital.

CORTA para:

  1. Vicente parado, na ala nobre do hospital, observa a distância um médico tão bem caracterizado como o “médico confiável”, que parece saído de um seriado americano, conversando com Flora. Os seus modos contidos dão todos os sinais de que são más notícias.

CORTA para:

  1. O hospital, visto do alto, em ângulo reto. Silêncio absoluto. Não se ouve nada dos sons da cidade.

CORTA para:

  1. Caio atravessa o pátio de estacionamento. Chuva forte.

CORTA para:

  1. Selma Plá ao telefone, ainda ao volante.

SELMA PLÁ

É…recebi agora…teu avô parece que tá mal. Vem prá cá…(pausa nervosa)…esquece a porra da reunião e vem prá cá!

CORTA para:

  1. Vicente se encaminha para Flora, encostada a uma parede, em choque. O médico desiste de estabelecer uma conversa e se afasta, passa por um Vicente compassivo, altivo, digno, vestido com suas roupas velhas de mendigo e arrastando ao pedestal com o soro. O médico volta-se para trás e faz menção de ir em sua direção, depois desiste e sai cabeceando. Vicente chega até Flora. Ela o encara, desconcertada. Vicente deposita o pedestal do soro como se fosse uma bagagem da qual se desembaraçar. Avança em direção a Flora e abre os braços. Flora se aninha neles e chora em abandono. Vicente a conforta.

MÚSICA: o movimento final de Caduceu, com os dois pianos levemente dissonantes como que embalando e dando sentido aos sentimentos de Flora.

CORTA para:

  1. Caio, tenso, conversando com o médico que conversara antes com Flora. Percebe-se que o médico está pouco a vontade. Seus gestos parecem querer indicar a Caio que ele está no lugar errado do hospital.

CAIO

Olha, é o meu avô, disseram que tava aqui, mais eu não achei ele em lugar nenhum…

MÉDICO

Tá, tudo bem…mas olha, você tá no lugar errado. Tenho certeza…tenho certeza de que aqui ele não tá, não…procura a recepção principal…

CAIO

Foda-se a recepção principal…ele não tá na ala dos fodidos. Eu só quero procurar pelo meu avô…

O médico e Caio são interrompidos pela chegada de Selma Plá, nervosa. Ela tenta conversar com o médico. É interrompida por Caio, cada vez mais nervoso. Ela se acalma e tenta conversar com Caio. O médico, por sua vez, a interrompe. Toda a cena é muda. Depois de algum tempo, a câmera foca o rosto do médico, se concentrando em sua boca, irritada, tensa. Subitamente, voltamos a ouvir o diálogo.

MÉDICO

Olha aqui, moço, já te falei que teu avô não tá aqui. Escuta, quer que eu chame a segurança?

Tomada de Caio e Selma, lado a lado, a partir das costas do médico. Selma parece desconcertada e Caio, perdido e quase chorando.

CAIO

Eu só quero…(pausa)…eu só quero.

Selma Plá perde a paciência e se interpõe entre Caio e o médico.

SELMA PLÁ

Olha aqui ô fela-da-puta, vai procurar um tronco prá se enrabar!

O médico, surpreso demais para articular, a princípio. Depois, intimidado pela vontade e presença de Selma, que não cede um milímetro.

MÉDICO

O que? Olha, a senhora…quem é a senhora pensa que é? Eu vou chamar a segurança e é agora!!! Aliás, quem é a senhora?

Selma endurece ainda mais sua expressão, se é que isto é possível. Olha para o médico como se ele fosse um espécime interessante em um serpentário.

SELMA PLÁ

A nora de Flora Rosenblatt e uma mulher sem saco…

O médico fica desconcertado e irritado ao mesmo tempo, como uma criança a quem tiraram o doce. Vê-se que há uma luta interna se desenvolvendo: de uma lado a vontade de punir uma afronta e de outro o reconhecimento de que o autocontrole se faz necessário por conveniência. Além disto, Selma é intimidante demais e Flora Rosenblatt é pessoa importante e influente.

MÉDICO

Ah…desculpe. Não sabia…minhas condolências.

CAIO

Escuta, eu só quero saber do meu avô…

SELMA PLÁ

Peraí, condolências?

MÉDICO

Sua sogra esta na sala de espera, ali, dois corredores a frente…a direita. Com licença.

O médico se afasta, olhando de esguelha para Caio.

CAIO

Ô moça, desculpe a insistência…

SELMA PLÁ

Certo…relaxa rapaz, a gente acha o teu avô. Mas deixa eu ver minha sogra primeiro. Vem comigo!

Selma sai decidida. Caio, segurando desajeitado sua mochila, acaba por a seguir.

CORTA para:

  1. Vicente e Flora tomando café em grossos copos de plástico, sentados em um banco no jardim coberto do hospital. Flora aponta para o pedestal com o soro.

FLORA

Isso aí não te incomoda, não?

Vicente, plácido, se vira para Flora e ri.

VICENTE

Incomoda.

FLORA

Veio parar aqui, como?

Vicente retira a agulha do soro do braço.

VICENTE

Hoje de manhã. Foi uma noite fria, sabe? Aí eu acordei aqui…não sei quem me trouxe. E você?

FLORA

O nome dele era Mordechai, mas ele não achava que era um nome fácil. Sabe, pros negócios? Então ele se apresentava como Heron…era…

VICENTE

Era uma boa pessoa?

Flora deu um longo gole em seu café.

FLORA

Era. Tinha sentimento em tudo o que fazia.

VICENTE

É muito mais do que se pode dizer da maioria das pessoas. Então, acho que tá bom.

Vicente enfia a mão em seu jaquetão puído e tira uma bagana de maconha, que acende calma e cuidadosamente. Dá uma puxada e a estende para Flora.

VICENTE

Vai, você agora é uma viúva. Tá na hora de fazer umas loucuras.

Flora aceita a bagana e dá uma tragada profunda.

FLORA

Meus Deus, maconheira depois de velha…

CORTA para:

  1. Selma Plá e Caio entram de repente no jardim, mas param ao ver a cena de Vicente e Flora dividindo a sua maconha. Tímidos, como se receassem interromper um momento sagrado.

CORTA para:

Foco da câmera em Vicente e Flora, placidamente dividindo a bagana. Caio e Selma se aproximam, solenes. Selma abraça Flora e Caio senta ao lado ao avô, lhe acariciando os cabelos.

CAIO

Vem prá casa, Vô.

Vicente retribui a carícia nos cabelos de Caio, mas não diz nada. Selma se ajeita ao lado de Flora, colocando uma mão desacostumada ao contato em seu ombro. Flora ri suavemente, chapada.

FLORA

Agora eu tô ferrada, não tô? Viúva. Quer um tapa?

Selma pega a bagana da mão de Flora, apaga-a eficientemente com dois dedos molhados na boca e joga nas plantas próximas. Sua expressão é divertida.

SELMA PLÁ

Não.  Já faz um tempinho que eu não fumo issaí…maconheira…queria que o teu filho te visse agora.

Flora se aconchega a Selma. Vicente e Caio observam.

FLORA

Tenho saudades dele, do Benny…ainda não deu prá sentir saudades do Heron ainda.

Selma Plá estende a mão a Vicente, que a cumprimenta, sorridente. Caio o levanta e o ampara, mas é Vicente quem se empertiga e parece conduzir Caio para fora do jardim. Caio acena para Selma e a deixa com Flora.

MÚSICA: Volta o tema do tango de O último Tango de Vila Parisi, de Gilberto Mendes.

FADE OUT para:

A tela inteira escurece e começam a descer os créditos. A música aumenta e preenche tudo.

TESTAMENTO POÉTICO

impossível

E então dei para construir minha morte futura, que quero digna, plácida e cheia de significados.

Penso em meus discípulos em derredor, a me circular, a mim, ao velho pornógrafo, ansiando pelas pérolas que certamente brotarão de meus perversos e luxuriosos lábios.

O sonho de meu coração.

Morrer como um velho sibarita, desfrutando das lembranças de um passado de pecados ignominiosos e continuando a pecar como sói peca um velho sibarita: do jeito que dá.

E as notícias de meu passamento para breve certamente chegarão aos ouvidos das massas. Imagino o alvoroço, a comoção. Ah, os frêmitos inesperados acometendo doces mocinhas! Ah, o choro e o ranger de dentes.

Falarão bem de mim, sei que o farão. Elogiarão minha coerência: minha completa falta de fé no invisível, minha covardia gloriosa e plena, minha amoralidade congênita.

A morte que mereço, a de um meigo facínora.

Mal posso esperar.

Na verdade, posso sim, esperar.

Bastante.

AS MUITAS USAGENS DA MORTE

Until Death Do us Apart - Robin Hedberg
Until Death Do us Apart – Robin Hedberg

A morte é portátil, leve e dúctil.

Pode ser lenta e dolorosa, rápida e dinâmica, abstrusa, química, radiativa, abjeta, plástica enfim. Multifacetada dirá o antropólogo durante a entrevista. Não será gloriosa, entretanto, a morte, porque é uma avó. Sobretudo por ser uma avó. Também.

E pode a morte ser uma dama vestida de azul, que foi assim que minha tia Noêmia a viu, dia a dia se aproximando cada vez mais de seu leito. Ou talvez um um velho com nuançosos, doces, suaves traços de sabedoria ou um velhaco; um destes idosos cacarejantes que se deliciam com a imagem de colegiais nuas.

Ou pode ser a morte uma oportunidade para um porre total, que foi assim que meu tio Pedro a sentiu quando da morte do velho Hermínio, naquele dia de pássaros brancos sobrevoando o cemitério de finados. Um dia de chuva fina com uma aragem gélida vinda do rio, com todas as pessoas tornadas em distantes, desprezíveis desconhecidos.

O mesmo Pedro que teve uma morte de quarenta quilos em um dezembro mesquinho e qualquer e somente um cunhado para remover suas fezes, ouvir seus queixumes, contribuir com doçura para a sua dignidade, negociando mesmo com a Senhora de Preto, convencendo-a a comparecer durante um transe. Pedro morreu sonhando.

A morte pode, porque é honesta a régua da morte.

A morte é justa. E indiferente ao poder, à bondade, às boas obras, aos rituais.

Os nove trilhões de nomes da morte irão um dia ser revelados, cuidadosamente escandidos e o mundo, a propósito, não se acabará. Nem será mais sábio. Nem mesmo triste, só monótono.

E era o que eu tinha a escrever.

Um conto sobre espelhos negros, mulheres de sonho, mistério e predestinação

Cock And Bull Story Tellers - Michael Cheval
Cock And Bull Story Tellers – Michael Cheval

Imagine uma terra com árvores, estradas, florestas com mais árvores e pessoas de todos os tipos, mas sendo outra, a terra, não esta. Agora, imagine esta terra, a nossa, minha e sua, pelos olhos do outro sujeito (da outra) atrás do espelho. O estranhamento, a surpresa e a fascinação com o diferente, com outras maravilhas.

Uma via de muitas mãos, indo e vindo na horizontal, em perpendiculares, diagonais. As muitas visões: nossa, desta outra terra e a deles, nossos irmãos e irmãs nos mirando do outro lado do espelho.

Na casa da Mulher Velha havia um grande espelho negro, sendo  o negro, o metal espelhado encastoado em madeira velha, resinosa e de odor pungente. Constrastava a casa, simples, com o rebuscado do espelho.

A casa, branca, ampla, com poucos móveis, mas cheia de aberturas para que o ar entrasse, a luz entrasse e a Mulher Velha se confundisse com ambos. Ali, no banco de madeira rústica da varanda ela sentava, rodeada de caramanchões com flores risonhas e coquetes que cochichavam entre si naquele dialeto único, resquício emaciado da Primeira Língua.

Havia um jardim cercando outros jardins a se alcançar se o passante insistisse em ser alcançado por jardins, em mirar outros céus e apreciar outras constelações. A volta era o problema, não havia garantias. Nunca houve. Você estava aqui e depois mais adiante via as mulheres lavando roupas à luz da primeira aurora, em conversas eternas de mulheres. As primeiras, as que forneceram todos os motes, todos os assuntos, todas as cores para conversas femininas desde então. As conversas de mulheres, as conversas que sustentam o mundo. E também e ainda, os animais de pelo fulvo que te olhavam, curiosos e se perdiam entre arbustos, atrás de rochas, momentos depois.

No cimo de cada morro circundando em abraço apertado a cidade, adivinhavam-se coisas novas, de mistério, encobertas em névoa azulada do azul mais único porque só ali eram encontradas. Percebia-se que bastava apenas caminhar em direção a quaisquer deles, aceitar o desafio de procurar as veredas que levassem ao topo para que se testemunhasse a acontecimentos sussurrantes em andamento, a obras brancas e obras negras.

As parteiras da vila eram formadas ali, todos sabiam, embora não fosse o assunto objeto de comentários. Um dia uma moça descia de um morro, uma moça que conhecíamos antes, uma companheira antiga de brincadeiras, uma nossa amante de juventude. E sabíamos que a parteira antiga estava por morrer e acorríamos a sua casa para presenciar a troca de cajados e depois as deixávamos sós para que trocassem confidências arcanas e pueris.  “Eu já fui moça, assim…com tetas atrevidas”, “naquela árvore ali eu me deixei encostar pelo filho do coureiro”, “ a melhor forma de colher a mil-em-rama é esperar o começo de um verão, depois de uma chuvada…”, “nunca se deve dizer o próprio nome a ninguém em meio de mata fechada”.

E havia a Mulher Velha que podia ser uma jovenzinha ou uma avó, dependendo de há quantos anos estivesse no cargo. Os caminhos para sua casa, entretanto, eram pouco frequentados. As terrinas com seu almoço e jantar eram depositadas em pedras, na vereda-que-era-a-mais-velha. Evidentemente que se procedia assim por uma questão de cautela. O problema todo eram os caminhos em volta da habitação da Mulher Velha, que não só eram muitos, mas potencialmente infinitos. Uma questão técnica.

As Mulheres Velhas não pertenciam à vila. Simplesmente chegavam um dia, de carona em qualquer carroça, levando consigo nada mais que uma faca curva de poda e uma bolsa de couro. Nada de celulares, relógios ou afins. Confesso que jamais vi uma delas sequer dar a entender que conhecia computadores. No mais, usavam a mesma maquilagem que qualquer outra mulher, as mesma calças jeans marcadas por calcinhas cavadas.

Os espelhos negros passavam de uma para outra e uma delas, Valenciana, por alguma razão nunca explicada, me encontrou um dia junto do riacho e passou a mão em minha cabeça. E daí em diante, sempre que me encontrava, sorria para mim e as vezes me convidava a sua casa. Foi lá que pela primeira vez vi o espelho. Vetusto, indiferente, do tamanho de um homem grande e fixado na parede do fundo, antes da varanda.

Valenciana esperou que eu crescesse, então me ensinou a fazer amor e não me cobrou nada por isso. Foi até minha casa, cumprimentou polidamente a meu pai e ele, também polido, a ignorou como obrigam os bons costumes. Sorriu para mim e para minha mãe, com quem conversou por longas horas.

Ela me ensinou muitas coisas que me ajudariam na vida por viver. A arte de sentar-se, de dormir e de rir com vagar. A arte de cheirar constelações, de apascentar unicórnios e de afiar facas. As noventa e nove formas de segurar um seio, a arte de depositar a língua na flor-da-mulher, a arte de se deixar acariciar por mãos femininas em suas três versões: por mãos ávidas, por mãos calmas e por mãos inexperientes. A arte de aprender a aprender. A arte de tocar um instrumento de cordas no meio da floresta e a arte de esperar o vento certo para começar a tocar. A arte de falar as palavras de homem com voz baixa e quente para qualquer mulher e a arte de falar as palavras de homem com voz baixa e quente para ela. A arte de fazer malabares e a arte de furtar.

Depois me tomou pelas mãos e me apresentou à outra Mulher Velha que estava atrás do espelho negro e me levou para os jardins de sexta-feira, e para o lugar onde aconteceu a convenção das sereias, e para o lugar de esperar as conchas trazidas pela maré, e para o lugar onde havia a cidade de grandes prédios e os aviões orgânicos e quirópteros que voavam por sobre os prédios, e para a terra sussurrante onde mulheres teciam uma seda azulada e macia. E até mesmo para a terra onde as cobras sofismavam à tarde e terminavam suas noites com amenos pesadelos.

Me tornei homem e pedi permissão a meu pai para a primeira barba. Valenciana me presenteou então com um barbeador a bateria, recarregável.

Segui para Silvaplana, pois que não me restava mais nada que ser um músico. Meu pai amaldiçoou Valenciana, pois sonhava com um analista de sistemas.

Voltei para a vila e conheci muitas mulheres. Me apaixonei por Estela, a de olhos voltados para a lua, e nos unimos em grande festa, patrocinada pelas duas famílias.

No dia de meu casamento, já na mesa de convidados ao ar livre, vi Valenciana encostada ao salgueiro, ao longe.

Não quisera participar da festa e nós a entendíamos. Me lembro de seu rosto ainda jovem, firme, anguloso, mas belo. E me lembro de seu olhar perdido, como de uma mocinha.

Eu vivi para me tornar um mestre-cantador e compus minha cota de canções para que entrassem na lenda ou não, mas muitas entraram. E privei e duelei com Aderaldo e conheci a Moça Caetana, que só é vista uma vez pela maioria das pessoas. E criei meu filho e minha filha e os vi partir. E Amei Estela e com ela ri e com ela briguei que até as pedras acabam por se incomodar e também por se acomodar. E vi Estela sair de minha vida, com muita dor no meio.

Na velhice abandonei tudo e todos e tomei o caminho da vereda-que-era-a-mais-velha, onde era esperado.