Familiar 2 – by artursadlos – DeviantArt
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A verdade pode ser conhecida pela razão e também pela fé. Da primeira maneira trata-se de uma prospecção do espírito, enquanto a segunda é uma aventura arriscada. A primeira maneira foi preconizada por diletos varões. Guilherme de Ockham me vem à mente mas, principalmente Tomás de Aquino. A segunda maneira também, pelo Aquinate, mas a parte do arriscado devemos mais a Søren Aabye Kierkegaard, com sua concepção da fé como um salto rumo ao desconhecido.
Kierkegaard era dinamarquês e seu sobrenome significa cemitério. Já Aquino é só um lugar.
Aquino era de família aristocrática, enquanto Kierkegaard era um burguês, de família burguesa e era um sofredor profissional.
E temos também Mestre Eckhart, que conversava diretamente com Deus, assim como Juan de la Cruz e Santa Teresa de Ávila, que descendia de judeus como Tomás de Torquemada, um inquisidor que dedicou sua vida a queimar pessoas. Nenhum dos dois que eu saiba, Teresa também, se preocupava com a verdade. Eckhart por tê-la de graça e pela graça, Torquemada por ter o espírito tão cheio de soberba quanto um pároco tem o estômago repleto (falo de párocos antigos; os modernos tem a internet e automóvel). Teresa e Juan sofreram demais para se preocupar com o tempo em que viviam. Natural, privavam com Deus, o atemporal. Teresa significa “caçadora”.
O ano passado foi difícil para mim. Desagradavelmente (restrospectivamente, coisa para se repensar agora). Ano passado conheci a uma mulher vestida de azul, de rosto sempre sorridente e dada a conversas vagarosas. Suspeito que me levou o pai. Me deu algum susto. Minha tia Noêmia viu também à senhora de azul. Na verdade, uma grande fileira de tias e tios a conheceu. Uma enorme fieira cheia de nós, como fieira de pião. Um nó para cada vida, de modo que é especial a última hora de cada vida que a mulher de azul tomou. Mas eu falava da verdade.
Eu falava da verdade mas deveria falar da minha relação com a verdade. Esclareço, nunca foi muito boa. A fé, por alguma razão, nunca me foi acessível. Não que não tenha tentado, mas o Senhor Deus nunca me facilitou as coisas. Já a razão, com esta me dei melhor. Sempre.
Constrangedor como eu nunca consegui seguir uma missa (sou de uma longa tradição de católicos relapsos que nunca de fato levaram a sério admoestações de padres e, aliás, nunca gostaram muito de padres. Que me lembre, meu avô paterno evitava entrar em igrejas e nas festas religiosas chegava sempre depois da missa e ficava do lado de fora, o chapéu às costas, apreciando.
Minha avó era prima de meu avô. Eu nunca entendi os seus banhos rituais de sexta-feira.
Também meu avô materno não dedicava grande respeito à “Santa Madre”. Minhas avós não sei. Talvez orassem).
Certo, saí do parêntesis. Voltemos à verdade.
Friedrich Wilhelm Nietzsche não acreditava na verdade e tinha ojeriza à metafísica. No entanto, encontrei o seu “Assim Falava Zaratustra” em uma banca de jornal aos vinte anos e, vejam só, sem ter qualquer experiência prévia com o indizível (exceto Cego Aderaldo e Zé Limeira e Leminski) o apreendi de imediato. Daí que entendi que a verdade tinha a ver com a poesia.
De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito.
Isto é Nietzsche no seu “Zaratustra”.
Para apreender a verdade pela via poética temos que ter como pena um osso nosso e um sangue nosso. Quanto mais vermelho, melhor. Foi o que entendi e tentei levar à prática, não obstante meu sangue fosse rosado.
E então meu pai morreu em março de 2020 e não havia nenhuma verdade ali, somente um homem de face emaciada, magra e eu não o conhecia mais. Todo nós, filhos e filhas e netos rodeamos ao caixão. E se mostrou um caixão pesado quando eu peguei a alça da frente, à esquerda. E não havia nenhuma grandeza ali, somente a falta dele que tomou o lugar de seu corpo físico, de seu riso, de sua bondade.
Minha mãe, já dele separada, chorou.
Se havia alguma grandeza era pretérita, quando ele chegava à casa pela manhã, vindo de um trabalho noturno estafante e trazia queijo e pão fresco. De quando ele caminhou comigo num dia gélido, minha mão na sua mão. De quando ele me trouxe um livro que ele jamais leria, mas respeitava, pois que meu pai respeitava aos livros.
Se havia alguma verdade ali, era a da senhora de azul que levou de modo igual aos Tomases, o de Aquino e o Torquemada, a Teresa e a João e à minha tia Noêmia.
Meu pai lá, pequenino, finito e belo; como é bela a vida. Meu pai lá, cercado de flores murchas. Sinceramente (posso ser sincero), senti que a razão, a fé e a verdade não significavam nada ante à vida. E a vida é trabalho perpétuo.
Duas vezes se morre, primeiro na carne, depois no nome, escreveu Manuel Bandeira.
Acho que é tudo o que eu tenho a dizer sobre meu pai.