A PRIMEIRA ENTREVISTA DE SELMA PLÁ FEITA APÓS SUA MORTE

TÚNEL-2

ATO I

 

Sala de entrevista – hora incerta

 

I

 

─ Oi, é Selma, não é? ─ Senhora de seus trinta anos e pele escuríssima, a simpática conselheira remexeu em alguns papéis em sua mesa.

Lá fora caia uma chuva fina e constante molhando o jardim de contos-de-fada da sede.

─ É. Selma.

A conselheira colocou duas mãos em seu rosto jovial e sorridente.

─ Nome completo, por favor.

─ Pensei que estivesse tudo aí, cês devem ter arquivos né não?

A conselheira acenou para um aparelho ao lado.

─ Só para registro. Formalidades, querida.

E depois de algum tempo de expressão de saco cheio.

─ Burocracia. Até no pós-morte a chatice continua… ─ e se recompondo.

─ Tá. Selma Regina Monteiro Plá.

─ Melhor…vamos lá…─ e passou a ditar para o aparelho. ─ Selma, paciente recém-saída do Umbral. Fase um de readaptação.

─ Escuta, já que eu tô morta, será que não dava para agendar uma visita aí com o Beja?

Expressão de interrogação no rosto da conselheira.

─ Benjamin Rosenblatt.

─ Ah, desculpe, seu marido no mundo da carne. Desculpe, mas não. Outra jurisdição. Talvez com tempo, consigamos negociar com o pessoal judeu, mas não é garantido.

─ E já que começamos oficialmente as sessões, por favor me chame de Jáira. ─ E Jáira sorriu, balançando a cabeça.

─ Vamos lá, o que eu espero de você? ─ As mãos continuavam a se apoiar nos maxilares.

E elevou olhos zombeteiros como se procurasse uma recordação.

─ Quero um relato dos seus tempos no Umbral. Do jeito que quiser e levando o tempo que você quiser e no estilo que você quiser.

 

 

 

II

 

“Posso fumar?” Um cigarro nanocut se materializou entre os dedos de Selma que o deixou cair, o recolheu e levou à boca e uma brasa vinda de lugar nenhum apareceu na ponta e ela deu sua primeira tragada em anos.

“Rapaz…!!!” foi só o que conseguiu articular.”

─  E?

“Bem. Eu de repente estava lá, na Cidade, na casa em lugar nenhum que eu não sabia que ficava em lugar nenhum. Era sempre dia, ou quase sempre, porque as vezes tinha noites também, mas sempre, sempre nublado. Sol, nem pensar. Era só aquela coisa da casa, e eu dentro da casa, de vez em quando saía pra fora, mas no resto, na maior parte do tempo era só a casa.

E como eu dormia, meu deus, todo o tempo. Casa, andar pela casa um tempo e depois dormir, dormir e todo o tempo não tinha ninguém ali, mas eu sabia que tinha um mundo lá fora. Só não me interessava por ele.”

─ Nunca estranhou aquela solidão toda e a casa e todo o resto?

“Não. Era só a casa e eu não estranhava nada. ”

─ Entendo. Fome, medo, vontade de ir ao banheiro?

“Vontade de cagar?” Selma provocou. “Não. E nem fome e nem sede e nem sequer apreensão. Eu te disse, entorpecida.”

“Não sei quanto tempo durou esta fase. Me pareceram anos. Mas, gradativamente foi me dando no saco e eu comecei a sair para o quintal da casa…”

─ Havia um quintal?

“Havia. E uma rua assim bem calma. Caralho!, tinha que ser calma. Não tinha um puto ali.”

─ Você estava só. ─ E era uma constatação e não uma pergunta.

“Só e não me tocava que estava só. Eu acho que a palavra nem cabia ali: solidão. Não tinha nada.

E os dias vinham e iam (sei. Falei que só tinha uma ou outra noite, mas os dias iam e viam, isto eu sabia).”

Jáira estimulou-a a continuar.

“E então um dia eu desci pela rua defronte à casa e entrei nas avenidas e conheci à Cidade. Foi num dia como qualquer outro, nenhuma diferença.

E eu andei pela Cidade e havia lá aquelas coisas todas de uma cidade. As lojas, os restaurantes, tudo funcionando.”

─ Funcionando como?

“Só funcionando. Não me pergunte como, só sei que eu sabia. Mas era estranho. Você entrava num restaurante e havia comida ainda fumegante sobre a mesa, entrava numa loja e estavam lá os mostruários, todos limpos e…funcionais. Só não havia pessoas. Parecia que todas tinham acabado de sair, sei lá, pruma mijada ou para outro cômodo.”

─ Solidão?

“Não, só saco cheio. E dali eu peguei outra rua e depois mais outra e acabei na rua principal.”

─ Rua principal?

“Olha, não enche. Era a rua principal, tá bem? E aí, e foi aí que eu vi os ônibus, lotados de gente e os carros com insulfilm pretos, pretíssimos e você nem via quem tava dentro. Mas o que chamava a atenção eram os ônibus. Massudos, só com uma entrada, na frente, pintados em faixas de amarelo e azul e prata. E tinha aquele povo todo dentro dele, ninguém de pé, só tinha gente sentada. E eles olhavam pra mim e pareciam que tavam indo pra algum lugar (bem, certamente que estavam indo pralgum lugar).”

─ O que sentia quando viu aos ônibus?

“Era estranho, isto eu posso dizer. Pareciam familiares, como alguma coisa do passado. Era olhar pra eles e eu sentia uma infinidade de reminiscências, não lembranças completas, só flashes. Mas eram intensos.”

─ E mais ninguém fora os passageiros dos ônibus?

“Isso veio depois. Eu continuei a caminhar e cheguei no centro da Cidade e ali as coisas começaram a ficar meio malucas. Os prédios ficaram maiores e eu tive certeza de que não conseguiria mais voltar para a casa. Então, continuei andando.”

─ Me fale das sensações táteis, auditivas, dos cheiros.

“Hein? Sei lá. Eu ouvia música conforme passava por um bar ou por uma loja. Velhos standards dos anos trinta e quarenta. Jazz, sambas antigos, peças de música de câmara que quase dava para reconhecer mas eu não reconhecia.”

─ memórias fantasmas recorrentes, é muito comum.

“Como é?”

─ Continue, por favor.

“Tá, e havia os cheiros: comida barata de bar, perfumes, asfalto queimado. E as paredes dos prédios pareciam ser todas feitas de tijolos antigos, desses de olaria, antigos, grandes e quando eu chegava mais perto parecia que eram cada vez mais intrincados, complexos. Eu acho que poderia ficar horas só olhando pra uma daquelas paredes.

E aí me veio aquela porrada no peito, parecia um raio, só que sólido. Um soco bem no meio dos cornos e aí caí de bunda no meio do asfalto e me veio aquela certeza: eu tô morta, caralho!”

Longos minutos de tempo pós-morte depois.

“Morta.

O asfalto estava frio e gelou minha bunda e depois começou a gelar minhas pernas. E pela primeira vez eu tive, eu pensei, eu tive uma bruta vontade de mijar.”

─ muito comum, não se preocupe. Uma reação natural de autodefesa, um refúgio em necessidades naturais de um corpo físico.

“Você pode tomar no seu cu, também, se sentir alguma necessidade de se refugiar em necessidades naturais de um corpo físico.”

Jáira riu.

─ Calma. Desculpe pelo pedantismo. ─ Manteve-se ereta, estimulando, sem forçar a que continuasse.

Selma suspirou e desejou uma grande copo de conhaque para acalmar os nervos. Jáira se manteve impassível e a mágica do cigarro não aconteceu.

“Biscate!”

Jáira continuou impassível, embora ainda solícita.

“Tá. Então eu levantei e olhei pro lado, pra todos os lados e fiquei puta e falei assim comigo mesma ‘caralho, Selma, cê não tá vendo? Você morreu e tudo issaí em volta são só projeções mentais. As porras das merdas dos caralhos de suas projeções mentais. E não são nem originais, só muito bregas.”

─ E por que seriam projeções mentais?

“Porque, ô biscate, se a realidade fosse daquele jeito era uma porra de uma realidade de merda!”

─ Só uma curiosidade, você por acaso leu alguma literatura espírita quando viva? ─ Jáira estava ligeiramente zombeteira.

“Que literatura espírita?”

Jáira se limitou a manter um sorriso neutro.

“Eu sempre me perguntei…quer dizer…o sujeito era escritor quando era vivo e quando morre só faz vomitar platitudes? Um português de merda. Sabe, eu li uma vez uma senhora que escrevia, não ela, mas uma alma destas aí, desencarnadas. Era uma ghost writer a tal da senhora. E aí ela está aqui no além, a desencarnada escritora e encontra um menininho negro ali com ela e ela comenta ‘que bom que ele está aqui e não mais na sua tribo de antropófagos’. E ‘que bom que ele está evoluindo’ e mais umas merdas deste tipo. Sinceramente! Antropofagia? Que tipo de antropologia de merda que tem aqui no além? Antropofagia? E o menininho era africano. Antropofagia na África?”

─ Estar aqui não significa que muita coisa mudou. Se você era um medíocre na carne vai continuar um medíocre aqui.

“Certo. Então fica assim: eu não li tanto assim de literatura espírita. Provavelmente, não tenho certeza mas aposto, li muito mais mangás japoneses.”

Jáira riu, gostosamente.

─ Sabe, gosto de você.

 

III

 

E depois de algum tempo.

─ Acho que é só por hoje. Pode voltar para o seu alojamento. Deseja alguma coisa, há algo que eu possa fazer por você?

─ Rola uma cachaça ou uma bagana espiritual?

Jáira a acompanhou até a porta.

─ Temos uma cerveja fluidizada, serve?

 

Uma História de Amor

When Love and Hate Collide - by hurricanekerrie - DEVIANTART
When Love and Hate Collide – by hurricanekerrie – DEVIANTART

O blog feminista de Selma Plá, durante muitos anos, foi hospedado na versão eletrônica da revista Tempo, editada pelo sempre combativo e combatido Nuno Enkil. Vale a pena dar uma conferida em seus artigos, nunca comuns, nunca banais. Refiro-me a Nuno e não a Selma.

Selma, conheci numa mesa de bar, apresentada por Rocco e Rowena, o casal maravilha. “Você vai amar a Selma”, disse-me Rowena, “não tem cabeça mais privilegiada, é engraçada, é dinâmica e olha, leva a sério, leva mesmo, as suas lutas”. Não me decepcionei, era tudo isso e mais.

Em nosso primeiro encontro discutimos. Selma me desancou sem pudores e sem pudores disse o que pensava de mim, que eu era um machista posando de “homem compreensivo” e pior, desonesto, intelectualmente falando. Não, desonesto intelectual e intelectual desonesto, na hipótese generosa de ser minha pessoa apta a ser considerada um intelectual, do que não tinha certeza. Não, mentia, tinha certeza sim, eu era uma pequena fraude. Aliás, já te conhecia de fama, de conversas com outras pessoas, mas principalmente do que me contou a tua ex, que eu até demorei a levar em conta, a acreditar, mas que agora te conhecendo, tudo  se confirma.

Nos encontramos outras vezes eu e Selma e, inicialmente, nossos conhecidos até apreciavam os nossos embates, depois se encheram, pasmos com a virulência. Dela, esclareço, pois eu não conseguia, simplesmente não conseguia responder a Selma, esmagado pela força de sua personalidade. Ela era ativa, incisiva, impiedosa e certeira. Não mirava no coração, mas nas entranhas.

No lançamento de seu terceiro livro, inicialmente recusou-me dedicatória mas, instada por amigos comuns, acabou por garatujar mais um insulto: “Para te dar outro afazer, além de ser condescendente com as mulheres. Na esperança, claro, de que você leia (é prá isso que serve a esperança, afinal). Sem carinho e sem afeto, Selma”.

Depois aconteceu o lançamento de sua própria revista, Feminices, Femina ou qualquer coisa assim. Intensamente acessada, intensamente discutida. Fez história.

E depois o filme, Sorriso Discreto que Terminou com um Aceno Amistoso, produzido pelo seu filho, o Geofroy. Elogiadíssmo, premiadíssimo e o que muito me impressionou, caiu no gosto do público. Um enredo original, com duas histórias correndo em paralelas contrárias. Uma do fim para o começo, narrado em primeira pessoa por uma louca. A segunda, linear, narrada pela mesma mulher, só que aparentemente dotada de sanidade mental. Os fatos focados eram diferentes em cada história, embora se tratasse da mesma pessoa. “É coisa pensada para dar nó na cabeça de despreparado”, me comentou certa vez a Rowena, já separada de Rocco.

Escrevi uma resenha elogiosa, focada sobretudo na trilha sonora composta por Marcos Visconti e a banda Capitão Temor. Selma me cobriu de impropérios quando de um encontro casual na exposição de Lúcia Tominaga. Tive o rosto arranhado, tal sua fúria. Permaneci calado. Minto, cheguei a ensaiar um tímido pedido de desculpas.

Em 2033, ou 34 não tenho bem certeza, ela morreu. Dois anos depois a segui. Estranhamente, saímos do Umbral na mesma época, mais de duas décadas depois, socorridos pela mesma equipe. Tivemos os mesmos falhanços e nos revezávamos nas costumeiras entrevistas com nossos conselheiros, até que por fim Selma teve permissão para voltar à carne, como se dizia por lá.

Sua encarnação como Patricia Anne Tsung não foi pior ou melhor do que a maioria espera ou recebe. Cresceu em família de classe média, formou-se e se tornou pesquisadora de certo renome na área de física de materiais. Casou, descasou, converteu-se ao catolicismo quando por volta dos quarenta e pariu tranquilamente seus dois filhos, dos quais eu fui o último. Não foi pior ou melhor do que a maioria das mães, acredito. Alegrou-se mesmo quando  me tornei padre, não fez drama quando troquei uma carreira brilhante de teólogo pelo casamento com Maurício, aliás, Rowena. Adotamos a pequena Mbeke, aliás, Rocco, e mamãe alegremente consentiu em ser chamada de vovó.

A enterrei em 2138 e voltei mais tarde ao cemitério, subornei dois funcionários e mijei intensa e prazerosamente sobre sua cova.