
Man in White Suit – by Fabian Perez
“Você primeiro morde o limão, depois chupa o sal e aí dá uma beiçada”
Exu deu o exemplo e riu para o jovem pastor.
O banheiro do boteco tinha uma placa escrita à mão informando que a descarga não funcionava e no momento estava cheio de pessoas que, vez ou outra, entravam no banheiro que supostamente não funcionava. Havia um grande balcão retangular no meio do bar e o lugar tinha duas portas, cada uma dando para uma rua da esquina onde ficava o bar.
“Então, bebe só cerveja. É melhor”. Exu deu de ombros.
“Eu não bebo”.
“E também não frequenta botecos e nunca usou drogas e nunca roubou ou furtou ou condescendeu com a concupiscência…”
O jovem pastor olhou em confusão para o copo de cerveja preta em sua mão, sem saber como ele chegara lá. Havia um homem de pele escuríssima, magro e de meia-idade bem a sua frente, usando um terno antigo, um jaquetão cinza-pérola e gravata preta e vermelha.
Bonito e com belos dentes e cheirando a um perfume estranho que parecia variar com o tempo. Ora, um incenso lembrando sândalo, ora o cheiro de um suor agridoce, mas levíssimo e não ofensivo às narinas. Principalmente, cheirava a limpeza, a erva recém-cortada.
Uma mulher de cabelos pintados se aproximou e beijou a boca de Exu e, hesitando um pouco, a do jovem pastor.
Um grupo juntou duas mesas e começou uma roda de samba.
“Quase não se acha mais…”. Exu pediu uma cerveja.
“…Se acha o que?”. Sem saber o que fazer o jovem pastor bebeu a cerveja e pousou a mão, sem querer, na bunda da acompanhante do gordo que tocava cavaquinho e ganhou um riso intrigado e malicioso em troca.
“Roda de samba. Cada vez mais difícil. Não faz muita diferença pra mim, mas de vez em quando bate saudade, sabe?”.
Há muito tempo eu escuto esse papo furado, dizendo que o samba acabou. Só se foi quando o dia clareou…
O samba de Paulinho da Viola veio à cabeça do jovem pastor e não saiu mais.
“Pois é.”. Exu encheu seu copo e o cumprimentou com uma mesura.
Eu canto samba
Por que só assim eu me sinto contente…
E a coisa continuou, independente da vontade do jovem pastor.
Eu vou ao samba
Porque longe dele eu não posso viver
Com ele eu tenho de fato uma velha intimidade
“E não é mesmo?”. O gordo do cavaquinho entregou seu instrumento a Exu que continuou a música, de tal modo sincronizado que não pareceria a qualquer ouvido que tivesse ocorrido uma troca.
Se fico sozinho ele vem me socorrer
Há muito tempo eu escuto esse papo furado
Dizendo que o samba acabou
Só se foi quando o dia clareou
O samba é alegria
Falando coisas da gente
Se você anda tristonho
No samba fica contente
Um violão foi entregue ao jovem pastor por uma mulher com um perfume cítrico, com grandes seios em um grande decote.
Segure o choro criança
Vou te fazer um carinho
Levando um samba de leve
Nas cordas do meu cavaquinho
E sem perceber como o jovem pastor se viu acompanhando ao cavaquinho de Exu até o fim da canção.
E então, sem mais nem menos, tomou a iniciativa e enveredou por Pátio Custódio, que ouvira seguidas vezes na casa e na cama de Marisol. Incrivelmente, Exu o acompanhou, dedilhando o cavaquinho de forma estranha, na vertical e batendo aos pés e cantando…
Tanto como me quería
tanto como me adoraba
tanto como yo valía
y ahora ya no valgo nada.
(óle)
Una fiesta se hace con tres personas
uno canta otro baila
y el otro toca…
Se me olvidaba…
de los que dicen óle
y tocan las palmas.
Ainda mais estranhamente, o grupo de samba os acompanhou, nota por nota.
Exu, extático, parecia mudar de forma e de repente ali havia um outro dele, um homem jovem com um bigode quase invisível e de terno branco e gravata vermelha. Depois, jaquetão de novo, emendou com Agora é Cinza e Se Acaso você chegasse e Acertei no Milhar sem que o jovem pastor entendesse como era possível que ele acompanhasse cada mudança sem nem mesmo pensar em um violão que ele nunca aprendera a tocar.
Acordou no banco de cimento.
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Exu sentava-se sempre no último banco da igreja.
O hino Fé mais Fé havia terminado e foi emendado com Qual o inimigo que pode me vencer?, todos acompanhados entusiasticamente até a conclusão com o Revela, Senhor, embora não se tenha notado quando Exu acrescentou ao desfecho as três palmas rituais de agradecimento que foram incorporadas por todos os fiéis.
Não se notou também que Exu incorporara suas próprias canções, que iam se mesclando com os hinos. Algumas antigas, de cem mil anos, como a Toada do elefante e outras mais modernas como O astronauta e Não vou ficar de Roberto Carlos ou o Coco de Lia de Itamaracá ou uma versão de sua especial preferência de Calypso, com Roger Whittaker.
Não o fazia com má vontade ou com zombaria (ainda que fosse da mais escrota estirpe de zombadores). Não o fazia. E é tudo.
A cada mês ele visitava sete igrejas em sete noites seguidas, ao mesmo tempo que era convocado para festas diversas em Cuba ou na Nigéria e em muitos outros lugares. Uma agenda apertada.
Exu também vivia no mundo exercendo os mais diversos afazeres: pedreiro, padre, menino de recados e ativista político. E músico, principalmente e sempre.
E era velho. Mais velho que a maioria dos outros deuses e espíritos. Velho ao ponto de testemunhar a humanidade quase morrer na África e depois se espalhar pelo mundo. Velho para testemunhar a primeira morte que foi mesmo morte de verdade e não apenas morte morrida. Velho e muito velho para ser o primeiro pai de todos os trapaceiros, de todos os pilantras que já viveram e agem à sombra do mundo.
Exu era o mais velho, e muito mais velho que seu próprio nome.
Considerem Loki, Puck, Till Eulenspiegel, Malasartes. Vejam quaisquer de seus retratos e verão a face de Exu ao fundo, rindo. Pois ele foi o primeiro, muito antes do primeiro homem. Bem antes, na primeira manhã do mundo ele já estava lá, mesmo quando não tinha ainda forma e nem mesmo uma mente que tivesse consciência de que era uma mente, Exu já aporrinhava aos australopitecos e depois passou a aporrinhar aos neandertals.
Mas seu grande momento só chegou quando apareceu o homo sapiens, quando então ganhou peso e substância e sua história começou de verdade.
E Exu assistiu ao culto até o final e depois cumprimentou o pastor que o oficiava e bolinou às moças e depois foi ao bar e no mesmo bar bebeu e farreou.
E foi onde o jovem segundo pastor o encontrou. Bem, não assim encontrar de encontrar, mas encontrar. Uma coisa um pouco forçada, engendrada. Exu e manipulação nada mais são que um perfeito pleonasmo.
O jovem pastor, por sua vez, era protegido do pastor mais velho, ele mesmo de uma longa linhagem de homens de deus.
Mas não igual a do jovem pastor que era filho da dona de casa Marineide e neto de Dona Antônia que era chamada assim, Dona e Antônia, e não Tonha Tripa como a chamava sempre sua mãe de criação que era sua tia e gostava dela, mas muito mais de uma boa piada.
A tia chamava-se Terência e tinha uma descendência das mais variadas, como aquele Diogo de Sande, sapateiro de Ourém e aquela Marianinha escrava que botou sangue pela boca ao receber a hóstia e aquele Klaas Vertieden que veio como aventureiro em tropa da Companhia das Índias e aquele africano pai de quarenta e dois filhos e muitos outros. De modos que Terência tinha história e ficou conhecida de muitos, matriarca de muitas famílias e mãe postiça de muitos meninos e meninas, mas que era estéril. O caso é que Terência que fora antes Habiba e antes Abeba foi a primeira sacerdotisa aqui da terra.
E só para completar. Terência era muito, muito mais velha do que aparentava, embora sempre aparentasse ser, digamos, muito velha. Na verdade, ninguém se lembrava de Terência como jovem.
Excetuando, é claro, Exu.
Espero não estar confundindo as cabeças começando com Exu na igreja e depois no bar, mas o caso é que Exu foi à igreja atrás do tátara-tataraneto de Tonha Tripa por dever favor e cuidados a sua família (dela, Tonha e a Terência. Dele, o tátara-tataraneto, filho, sobrinho e também jovem pastor).
E foi isso e somente por isso que a igreja do jovem pastor foi inserida no circuito das sete igrejas, porque era uma igreja muito sem graça, pequena, e tão mal localizada quanto indicava o aluguel relativamente barato do salão.
A igreja, aliás, não era só frequentada por Exu, mas por miríade de santos, pequenos deuses e fantasmas de todo lugar. Como qualquer outra igreja, aliás, só que tão mixuruca que a plateia sobrenatural também não era das mais graduadas.
A frequência de Exu foi o máximo que o pequeno templo jamais conseguira e sequer ambicionara, pois é bom que se saiba que todos os prédios, especialmente os templos, tem personalidade própria, como lhe dirá seu amigo espírita.
Egrégora, é nome que dão à coisa, à alma dos prédios pensantes.
E a igreja que, aliás, era um prédio-moça, gostava de Exu por que ele sempre era gentil e perguntava pela saúde e fazia galanteios mil e falava safadezas que a faziam corar. E assim, lá vinha Exu todo sábado e ficava lá sentado.
E foi depois do culto que o jovem pastor, sem saber por que, saiu sem avisar ninguém e começou a caminhar. Primeiro, descendo a rua defronte à igreja até a praça e depois da praça continuou até a estação ferroviária, tomou um trem e sentou no assento reservado aos deficientes onde teve um leve ataque cardíaco e ali ficou em angústia por cerca de vinte minutos que lhe pareceram horas.
Depois, sentindo que melhorava, saltou na primeira estação, onde caminhou mais uma vez por todas as ruas que a circundavam, sentindo ainda a opressão no peito.
E então encontrou o boteco e seu mal-estar desapareceu.
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“Acha que isso é bonito? Acordar Bêbado num banco de praça?”
O jovem pastor comia um prato de feijão com farinha com torresmo e ovo, observado com desconfiança por seu padrasto.
“Acha…?”, dona Marineide verteu mais do suco no copo.
“Você não me responde, Edenilson?”
“O pastor telefonou a manhã inteira…te procurando…”. O Padrasto.
“Edenilson, meu filho…”, dona Marineide sentou-se e começou a chorar. “Vai acabar como teus irmãos? Vai, Edenilson?”
O jovem pastor pensava em Marisol.
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Exu caminhava pela praça e era meia-noite.
E junto com Exu estavam Papa-Legba, vinte e tantos anjinhos de asas rosadas e faces rosadas e mais cento e vinte sete Exus de umbanda e o menino Calunga e o menino Negrinho do Pastoreio e um fantasma decrépito e branquicento.
De modo que as ruas estavam tomadas e repletas e os outros desencarnados se escondiam em vãos de escada e choravam, transidos de frio e medo.
Exceto Maxence de LaRue. Exceto Besouro do Cordão-de-Ouro. Ambos bebiam da cachaça mais fina e miravam com deleite o passar da comitiva que passava.
Havia ali uma confusão plasmática, com o que o Haiti, a Louisiana, a Ciudad de Los Negros no Peru se confundiam e se ouviam músicas estranhas. Como aquela da menininha que não tinha medo dos touros porque falava a verdade. Ou aquela outra da serpente arco-íris que desceu do céu e se enredou nos pilares da aurora. Ou aquela da aranha que barganhou com uma onça a posse de um caralho, o caralho da onça.
O fantasma de um cavalo pastou a grama mais verde aquela noite e foi feliz como há muito não era. E uma mendiga relembrou ponto por ponto uma novela televisiva dos anos setenta e chorou e seu coração remoçou sessenta anos.
E Exu cumprimentava a todos e a todos dizia boa-noite, como vai a obrigação?, como tem passado?, e de brincadeira passava a mão na bunda de muitas mulheres e também de homens que gostavam de ter suas bundas apalpadas. Uma noite em mil, uma ocasião.
E havia ainda os santos da terra, humílimos, os que não foram canonizados mas que eram santos, como aquele João Toró, que perdera os dedos dos pés ou aquela Andressa de Jesus que tinha uma chaga perpétua na panturrilha esquerda ou aquele Takeshi que descera do primeiro navio que aportara em Santos e que depois foi quase escravo em fazenda no Paraná e que fugira numa madrugada quente de verão, conseguindo chegar até Santos e depois até mais ao sul onde plantara bananeiras e morrera de uma tuberculose que contraíra ainda no navio.
E a este Takeshi Exu saudou com um abraço apertado e com ele dançou e cantou o Asadoyayunta, com direito a assobios e tudo o mais. E mesmo para provar que a amizade de Exu era pedra noventa e sólida como o tempo, convocou uma orquestra de tocadores de shabisen, das antigas, com instrumentos feitos de pele de cobra. E Exu, correto e decidido, cuidou de embebedar a Takeshi e Takeshi dormiu.
E o bom cardeal, que fora antes o bom bispo e antes o correto padre que gostava de molestar meninos, saiu à rua pela primeira vez em décadas. E chorou o choro denso e contrito dos crápulas arrependidos que se arrependeram de verdade verdadeira e vera. E Exu o recebeu com galhardia e tato, pois que também era santo mas se dava ao respeito de pelo menos disfarçar, com o escondimento preciso de um ator completo.
E o cardeal dançou com Exu, desajeitado, e Exu ordenou a sete pomba-giras que aspergissem óleo e incenso no caminho e no cardeal para que ele parasse de cheirar tão mal e depois ordenou a elas que o conduzissem dali para o caminho doído do renascimento.
E Exu, caminhando e dançando, e rindo, ignorava aos deuses bons, aos preceitos e às profecias e às sabedorias diversas e aos dons e aos áulicos da sabedoria e aos jejuns e aos olhos natimortos dos bons modos, mas os saudava com alegria.
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O jovem pastor não conseguiu que Marisol descesse e teve que ir embora com o olhar desconfiado do porteiro queimando suas costas.
“Está ficando cada vez mais difícil te encontrar, hein, menino?”. Exú se refestelava no banco do ponto de ônibus de acrílico, ladeado por duas mulheres jovens e bonitas.
O jovem pastor mudo, ouvia e não ouvia à voz de Exú. O mundo todo parecendo viscoso, mole, a vida escorrendo, não devagar, mas sem pressa.
“É o teu sobrinho?” A loira, de seios pequenos e corpo musculoso de academia.
“Bonitinho…!” A morena.
“Coisa de família, meninas…” Exú tomou o jovem pastor pela mão e o fez sentar entre as mulheres, postando-se a sua frente. E continuou:
“Homens bonitos…”, e achegou-se a cada mulher, cheirando seus cabelos. “E safados”. As mulheres desmancharam-se em risinhos deliciados.
“Esta é Camila…” e acenou para a loira. “Estudante de direito em alguma universidade aqui perto, certo?”
“E esta…”, e completou um mesura para a morena cheia de curvas, “é Josí, que eu não tenho a mínima ideia do que faz.”
O jovem pastor riu, desajeitado.
“E agora, eu faço o que?”
“Agora…” e Exú levantou um dedo, professoral e risonho.
“Agora, você aprende a viver”
E levou o jovem pastor e as moças para a terra onde manava leite e mel.
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