A DEMANDA DA DAMA CHOROSA A DOM JÁQUERSON, O PEREBA

Interview With The Dragon - Deviantart - By Scarlet dragonchild
Interview With The Dragon – Deviantart – By Scarlet dragonchild

Uma calça colante e uma camiseta cheia de brilhos. Muita e mal aplicada maquiagem também e ela sentou-se na cadeira, enquanto ele continuava a consultar um caderno de apontamentos. Ela esperou, observando o entra e sai contínuo de pessoas que deixavam envelopes ou capangas na mesa. Um ou outro o consultava por vezes em voz sempre baixa.

Finalmente ele voltou os olhos para ela, pensativo, mexendo casualmente numas trouxinhas plásticas de maconha que enchiam sua mesa.

“Bem, creio ser tempo de vos perguntar o que quereis aqui, boa senhora?”. E, com ênfase, “Senhora?”.

“Perolayne Jhenifer, bondoso Jáquerson Romão”. Ansiosa, torcia os cabelos pintados de amarelo-gema-de-ovo.

“Chamai Pereba, como todos, senhora Perolayne”, e aguardou.

“Bem, não fosse por questão premente, delicada mesmo, não vos perturbaria em vosso local de trabalho, atento Pereba”, e sorriu fracamente, “mas necessito dos serviços que somente vós podeis me obsequiar a contento. Vede, preciso encontrar a Juvenilson, outrora esposo meu”.

“Mas… surpreendo-me assazmente, permiti que vos diga”. A face retorceu, algo dolorosa.

“Vede, não privo com Juvenilson há meses e sinceramente desconheço seu paradeiro”.

“Bem o sei, valoroso Pereba, mas Juvenilson já labutou sob vossas ordens, aqui, em vossa operosa biqueira, donde sabem todos que são comerciados aos melhores entorpecentes”.

“Fato”, ponderou risonho, Pereba, iniciando um périplo meditativo pela sala. “Juvenilson, a quem muito estimo, aqui trabalhou na venda de entorpecentes diversos, bem como, por dá cá aquela palha, na nobre função de matador oficial”.

“Mas, permiti-me um pequeno reproche, senhora Perolayne, recordo que vós não tínheis em grande conta as altas funções que aqui desempenhava Juvenilson”. E severo, postou-se a frente da mulher, mãos às costas.

“Verdade e penitencio-me por tal juízo apressado de minha parte. Ocorre que anelava por mais alta profissão para meu consorte, talvez no ramo do roubo de automóveis ou até quem sabe se estabelecendo como autônomo no ramo do assassinato profissional”. Torceu as mãos, chorosa, “peço-lhe que releve, são anelos de mulher, de esposa que apenas quer o melhor para seu eleito”.

“Naturalmente, naturalmente, esqueçamos coisas pretéritas e nos concentremos no que agora requestais. Dizei-me, se desaparecido está Juvenilson, não seria mais sábio pedir socorro à polícia”, e disse “polícia” como um satanista diria “Jesus”.

“Certamente que a ideia me ocorreu, expedito Pereba. Entretanto, bem sabeis que Juvenilson não era, não é e nunca será amado pelos severos policiais. Temi que em requestando que o achassem, poderia estar contribuindo para comprometer a integridade física do homem amado”.

Entrou um jovem magérrimo na sala e, mudo, aguardou a atenção de Pereba.

“Dize o que quereis, Aguinaldo ”. Tranquilamente, voltou a sentar-se Pereba.

“Agradeço-vos a atenção, arguto chefe meu”. Aproximou-se da mesa onde Pereba, imperial, o observava atentamente.

“Bem sabeis”, disse Aguinaldo, “que na qualidade de ‘recolhe’ de vossa operosa biqueira, é minha função trazer-vos o apurado em todos os nossos pontos de comércio”.

“Pois bem, aproximava-me do ponto de vendas de entorpecentes situado na Viela do Careca, no Jardim Trancoso, quando notei desusado movimento, em tudo destoante do normal”.

“Dize com brevidade o que vistes!”, cortou Pereba.

“Ouço e obedeço. Ora, estava o local tomado por policiais militares em azáfama. Em apertada síntese: nosso ‘vapor’ Dêivide e seus dois ‘olheiros’ foram presos, sendo-lhes tomado a maconha, lança-perfume e cocainóides diversos que ali comerciavam”. Arfou, expectante, Aguinaldo e aguardou.

Pereba levou uma mão ao queixo e meditou por minutos.

“Bem, são os azares de nosso comércio. Ademais, Dêivide era funcionário novel e algo descuidado. Fazei como vos digo: aciona a Marreta para que cuide de contabilizar nossas perdas, bem como para que faça comunicação imediata a nossos superiores”.

“Acionaremos causídico para que patrocine a Dêivide e seus rapazes?”, Aguinaldo trocou de pernas.

“Não, o concurso de advogado não acudiria a ninguém em tal situação. E, sinceramente, não é o caso de eventual suborno, pois que pequenas as perdas. Entretanto, ad cautelam, ordena a Moura que acompanhe o caso através de seus contatos no meio policial”. Aguinaldo saindo, voltou-se, não de todo agastado, sorrindo até, para a mulher.

“Vosso perdão, pela interrupção, mas os negócios…”, e ergueu os ombros. “Voltemos a Juvenilson, senhora Perolayne.

“Não vos desculpeis, extremoso Pereba. Sei de vossas altas responsabilidades”.

“Vos agradeço. Agora, Juvenilson…peço que pondereis…”, tomou de uma bagana de maconha e a acendeu, mirando o teto de zinco. “Posso apenas prometer que colocarei meus melhores e mais vivazes em seu encalço. Dê-me uma semana, até lá terei, de uma forma ou outra, atendido a vossa demanda”. Cavalheiresco, ofereceu a bagana à mulher.

“Não, obrigado, não me apetecem os canabinóides, cortez Pereba”. E tomando-lhe uma mão e a levando ao seio, “e tudo o que fizerdes, sei que o farás com denodo e lisura”. E sorriu. Também Pereba sorriu, a mão ainda envolvida na maciez do seio.

Foi-se Perolayne.

Pereba tomou de um vistoso celular.

“Alveston? Pereba. Vinde a meu tugúrio, tenho uma missão para ti”.

Tragando sua bagana, plácido, Jáquerson, o Pereba ponderou sobre quais seriam os motivos de Perolayne para encontrar o desaparecido Juvenilson.

“Formosos seios…”, divagou sonolento.

“para não falar dos glúteos”.

E manteve latejante ereção por todo o resto da tarde.

O cretino, este esteio da civilização

Como reconhecer o cretino? Relativamente fácil: o cretino é dado a ter certeza de tudo e gosta de sobre tudo opinar. Melhor ainda se não entender do assunto. Ele, o cretino, não pode evitar: é um cretino, pois não? O cretino entra na conversa onde não foi chamado, toma intimidades, aí dispara uma sandice qualquer como se fosse a filosofia última.

De vez em quando procura dignificar a merda que lhe sai da boca com um “eu estava lá”, “eu estava no jantar”, “eu conheci o deputado pessoalmente”. O cretino, se sociólogo, irá lhe dar aulas de sociologia; agora, se for motorista de caminhão, também irá dar aulas de sociologia. Aliás, temos mesmo a sociologia provincial do cretinismo, a de bar, aquela com a qual salvamos o mundo! É cruel o cretino…

Podemos ainda discernir dois outros tipos de cretino: um, fala aquele “patois” ininteligível do tipo “sabe aquela parada lá”; “demo umas porrada”, “tipo assim tá ligado?”. O outro, é pior, se mete a falar o que ele acha que é um português sofisticado. É o citador, por excelência: “noventa por cento dos brasileiros não sabem votar”, “os negros são mais preconceituosos que os brancos”, “o povo só serve para ser enganado”; com o que subentende-se que o cretino sabe votar, entende de relações intrarraciais e é consciente politicamente.

E aí? E aí nada, você ouve o cretino, que é prá isso que você tem ouvidos…e se ele parar por aí, considere como uma vitória e mantenha o seu santo silêncio. É perigoso o cretino…

O cretino é uma necessidade. Sem ele, o mundo não teria balizas. O cretino é a marca, o acidente geográfico que identifica a paisagem. É o patrono de nossa formatura e o autor soberano daquele livro que nunca leremos. E claro, sou eu o cretino e, requerendo o seu perdão, talvez você. Nós, os cretinos, não o reconheceríamos sem termos a nossa verve cretínica como parâmetro.

Falo a propósito de ontem, dia santo, onde tive oportunidade de estar entre dois cavalheiros: um totalmente embriagado. E havia o outro, este sim não tinha desculpa, era cretino mesmo.  Não obstante os diferentes estados de consciências, me disseram praticamente as mesmas coisas: doutrinaram, me explicando qual o melhor governo (que não é, claro, o atual). Alargaram meus horizontes mentais, discorrendo sobre política, principalmente no bom que seria se voltasse uma ditadura novamente aí sim eu queria ver, porque meu pai viveu durante a ditadura e não viu nada de mais e naquela época sim tinha respeito. Moralizaram, fazendo-me ver as corretas condutas, os melhores procederes. Finalmente, bondosos, me apresentaram a Deus.

Pois é. O cretino.

Acho que perdoo o imbecil movido a álcool, mas não o imbecil “in natura”, já nascido assim e evoluindo para ser cretino e destinado à cova ainda como cretino.

Mas. E ainda. Entretanto.

Necessário se faz o cretino, é fundamental (se me perdoam o trocadilho Rodrigueano).

Mas como é chato…

GUIA DO OUTRO MUNDO

Inframundo by - Edgar Clement
Inframundo by – Edgar Clement

E então comprei este livro num sebo, destes aí, que você garimpa e dentro dele garimpa ainda mais, procurando aquele livro que tá lá (sempre esta certeza), te esperando.

Guia dell´Altro Mondo, de Ornella Volta. Tenho comigo uma simpática tradução da Hemus, sem data de edição e somente com a anotação de 1973 para o copyright.  Pesquisei sobre a autora na rede e me retornou uma senhora de rosto simpático, autora de uma biografia de Erik Satie, entre outras obras.

Tá, o Guia do Outro Mundo. Recomendo.

Idéia fantástica a da senhora Volta: oferecer aos desespiritualizados um guia seguro para o pós-vida, descrevendo aos diversos paraísos e infernos de diversas religiões, propiciando ao futuro morto novel a escolha de um que melhor se adapte a suas preferências, a sua índole.

E que viagens maravilhosas me proporcionou Ornella. Paraísos e infernos cristão, judaico, islâmico, fino-úgrico, celta, romano, grego. Mas não só a descrição pura e simples, mas mesmo os preceitos para o bom acolhimento ou os cuidados para os evitar.

Sim, a senhora Volta nos previne quanto às exigências burocráticas para a entrada e a permanência. Nos alerta para os perigos, nos acautela contra as  armadilhas-de-turistas. Nos diz como e o porquê.

Minha ignorância nunca se mostrou em toda sua glória, senão quando tive acesso a esta simpática brochura.

Ora, saberia eu, de outra maneira, por que chora Moisés no sexto céu do supramundo muçulmano? E sobre a jumenta branca Borak, alimento sempre redivivo dos bem-aventurados? Saberia que me pode ser acessível ter a elevada estatura de Adão, a beleza de José e o coração de Abraão, bastando para tanto escolher com cuidado a minha futura fé?

E romanos e gregos? Pensava neles como tendo um céu chinfrim e me enganei.

E os egípcios? Soberbos construtores de paraísos e infernos. Os hindus então, nem se fala. Nem mesmo os chineses foram esquecidos.

Assim também os celtas, os fino-úgricos. O céu Acadiano, por exemplo,  é uma maravilha de empreendimento burocrático, com suas deusas contadoras, seus porteiros demoníacos com cabeça de leão, seus crocodilos sem dentes. Enfim, seus amanuenses sobrenaturais.

Vale a pena a leitura, mais, o deleite que somente este pequeno guia metafísico dos diversos mundos do pós-vida pode proporcionar.

Recomendo a todos, a vocês, os puros de coração, uma procura imediata nos sebos disponíveis.  Anotem: Guia do Outro Mundo, de Ornella Volta, editora Hemus.

Não é por ser inevitável que vamos descurar do nosso futuro.

Um pós-túmulo escolhido com critério, é um pós-túmulo feliz.

Aí tendes: o último guia de turismo que usareis
Aí tendes: o último guia de turismo que usareis

A SALA-DE-ESTAR DO CAPITÃO NEMO

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No dia 05 de novembro de 1866, por volta de onze horas da noite o Abraham Lincoln foi torpedeado por um narval fantástico e três de seus tripulantes foram jogados ao mar: um arpoador canadense, um cientista francês e seu secretário e faz-tudo.

O navio continuou.

O caso se deu talvez a duzentas milhas náuticas do Japão e estava-se no inverno, então acho que fazia um frio do cão.

Todo caso, todo modo, estavam os três náufragos. O professor Aronax, o sábio francês; seu criado Conseil e Ned Land, o arpoador canadense. Bem, na verdade só o professor e Conseil, Ned Land se juntou depois ao trio.

Estou falando das Vinte mil Léguas Submarinas de Júlio Verne que li aos doze anos, mal. Reli aos vinte, vinte e um e vinte dois e agora na idade provecta em que me encontro. Não encontrei Deus e nem o sentido da vida, mas entreteu. Entrete.

As coisas. A vida. O individual. Júlio, meu chapa.

Mas aí eu li e reli e descobri que minha primeira impressão não mudou. Não, li as vinte mil léguas um porrilhão de vezes só para descobrir que a melhor parte era justamente a de três homens, boiando na escuridão (foram jogados do navio às onze horas da noite) e ficaram lá boiando. E tava um puta frio (devia estar, até quero que estivesse (é importante para mim que os três estejam boiando em água gélida)).

Pouco depois Aronax e Conseil ouvem uma voz e encontram Ned Land sentado em cima de um…bem, um submarino. É, o Nautilus, o submarino criado e comandado pelo Capitão Nemo, o sujeito ali que faz o papel de principal protagonista, o anti-herói, o cabra que faz a história andar.

Mas o que me tocou foi que as coisas mudam. Num momento, os três na escuridão, no frio molhado e logo depois as escotilhas do Nautilus se abrem e os três são acolhidos, recebem roupas secas e algumas horas depois Aronax é recebido por Nemo em pessoa, em seu sancta sanctorum, seu camarote estendido, sua biblioteca.

Notem o contraste. Num momento, a solidão abissal e gelada, o medo sólido e logo depois o acolhimento, o útero morno do acolhimento no interior do Nautilus, o museu pessoal de Nemo.

Lá, Nemo recebe Aronax e lhe mostra maravilhas ─ e o Nautilus mergulha e navega na escuridão ─, conversa sobre temas que são caros a Aronax.

E lá fora o elemento frio e aquoso.

Um útero.

Certo, Júlio Verne pode ser um grande chato. Na verdade ele é. Ele não tem prosa, tem verborragia. Um parágrafo começa com uma paisagem dos recifes de Cartier e Seingapatam para a seguir nos deleitar com explanação tediosa sobre diversidade das temperaturas nas várias camadas marítimas. Ante uma paisagem de banquisas no ártico contrapõe Verne uma exposição prolixa sobre as diversas teorias a propósito da localização do polo sul.

Entretanto, ora vejam, Homessa!, o nome do sujeito era Verne e o século era o dezenove e não havia ainda muito que se parecesse com a literatura fantástica. Então daremos um desconto.

Sempre dei, seduzido pelo contraste entre as cenas iniciais de um dos primeiros capítulos do livro. Nisso, Verne foi genial, captou todo o espírito de uma época e todo um recorte do espírito humano: a dicotomia entre o nosso desejo de acolhimento seguro, tépido e tranquilo e a perigosa atração da escuridão.

Três homens perdidos no mar gelado e no breu da noite de cinco a seis de novembro de 1866. E a maravilha aconchegante e heroica do Nautilus, ainda mais benvinda por ser inesperada. Júlio Verne entendia do seu Métier.

Acrescento que outro dos deliciosos momentos que o livro me proporcionou foi outro contraste: Verne era francês, assim como francês foi o século dezenove. E perpassa por todo o livro o orgulho quase infantil do autor pela França, que se cria mestra e guia de povos e pelo francês, que era idioma que se cria universal.

Mas já ali se sentiam os roncos e cliques da máquina que assomava, o inglês já se intrometia, não na figura do império britânico (decadente, grosseiro e incapaz do gesto sutil na opinião geral dos franceses), mas do nascente império americano.

Verne foi sensível a este despontar e recheou suas histórias com personagens secundários vindos dos Estados Unidos. Era a época.

Mas devaneei, eu queria mesmo era falar, escrever e comentar sobre a sala-de-estar do Capitão Nemo, que já me teve e me tem sempre como hóspede.

“─ Capitão Nemo ─ eu disse ao meu anfitrião, que acabava de se acomodar num divã ─, eis uma biblioteca que honraria mais de um palácio dos continentes. E pensar que ela pode acompanha-lo às mais ermas profundezas…

─ Onde encontraríamos maior solidão, maior silêncio, professor? ─ respondeu o capitão Nemo.”[1]

E é isso, leiam a porra do livro.

[1] A tradução é de André Telles, na edição de 2012, dita definitiva, publicada pela editora Zahar.

SATÃ: CAVALHEIRO E POLÍMATA

Sem Título - Braga (2012)
Sem Título – Braga (2012)

Satã é culto, muito culto. É a primeira coisa a se saber sobre Satã. Filosofia, culinária, mecânica de autos, a biografia de Atahualpa, é só perguntar e pá, tá lá Satã arrasando no Quiz. Um portento.

É também elegante, embora nada vaidoso. Não, você não encontrará Satã vestindo um terninho Armani qualquer. Ele é elegante, mas adepto de moda mais conservadora, para cavalheiros. O que não significa que você vai flagar Satã enrolado em casimiras o tempo todo, pois que a moda de Satã é também atenta ao clima. Espere sedas de Satã, mas nunca o mau gosto.

Satã nasceu de parto normal. Narro.

Estava lá o Todo-Poderoso no começo (embora não se possa falar em começos propriamente ditos. O tempo sequer ainda fora criado). Bem, o Todo-Poderoso, no começo, muito sozinho, quando de si criou, de si deu forma, de si plasmou a Satã. Anos depois, para o arreliar, Lúcifer dizia que Satã fora criado da consciência de Deus, o que explicava muita coisa.

Mas alterego ou não do Senhor, importa é que Satã, criado, inventou de certo dia dar um passeio mais prolongado pela Cidade de Deus. Visitou lugares, abriu portas, espiou por entre biombos e finalmente acabou no vestíbulo da câmara divina, passou pelo coro celestial cantando em êxtase as glórias do Criador e decidiu dar um “oi”. Não sabemos o que viu na câmara privada do Senhor, mas sabemos que sua expulsão e queda se deram pouco tempo depois.

Simpático também Satã, em tudo destoante de sua imagem nossa mais conhecida. Capaz de bom papo, é conversador sedutor e atento. Ah, os mot d´sprit de Satã. Impagáveis.

Mas, erro comum, Satã não é onisciente. Nem onipresente. Nem mesmo ubíquo, é só veloz.

Também é apaixonado leitor de qualquer obra escrita por mãos humanas, assim como é também apaixonado seguidor de seus modismos. Satã ama a incoerência humana.

Em passado recente, por exemplo, Satã foi aplicado estudante de esoterismos diversos.  Por esta época Satã residia em Lisboa.

Astrólogo amador, montou o mapa astral de Deus e, em dada parte da vida, se creu um médium. Vivia assim garimpando leituras e preferências místicas: Figanière, Papus, Agartha e Shambalah, Stanilas de Guaita, teosofia, Madame Blavatsky, teurgia, Ísis Sem Véu, Martinez de Pasqualy e toda a salada esotérica do século XIX, que mantém ainda tantos seguidores aqui neste lado do milênio.

Era presença sempre constante nas orgias programadas por Aleister Crowley, além de sócio da sociedade mística Golden Dawn e cofundador da Église Luciférienne que tanto furor causou depois do infeliz incidente envolvendo a Marie Louise, Baronesa Beaucorps-Créquy e o infame Abade  Boisbaudry.

À época, Satã também era dado a depressões, cujos desenvolvimentos ele cuidadosamente anotava. Então, é datada de 10 de junho de 1919 sua carta a Hector e Henri Durville, diretores fundadores do Instituto do Magnetismo e do Psiquismo Experimental com sede no número 23 da Rue Saint-Merri, Paris.

Hector, aliás, era redator do Jornal do Magnetismo e autor de obras sobre Terapêutica Magnética, seja lá o que isso for.

O interessante não é a remessa da carta, mas a carta em si, cujos originais podem ser encontrados na Correspondência de Maria de Lourdes Barahona Fragoso e Mira, doada por seus herdeiros ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal. Evidente que ali foi juntada por engano, como se da lavra de Maria de Lourdes. Inexplicada resta ainda a circunstância que levou a missiva satânica a se juntar à correspondência de Maria.

Mas voltando à interessantíssima carta. Nela, Satã gastou um parágrafo de cinco linhas para solicitar remessa de catálogos completos e, principalmente, informações sob um Curso por Correspondência de Magnetismo Pessoal.

A seguir, dizendo que tal seria útil para orientar a seus correspondentes, gastou outras cento e quatro linhas a falar de si mesmo, de suas neuroses, que são expostas, detalhadíssimas no jargão científico então em moda na psiquiatria da época. E em excelente francês (Disse que Satã era culto, pois não?).

Au point de vue psychiatrique, je suis un hystéroneurasthénique, mais, heureusement, ma neuropsychose est assez faible; l´élément neurasthénique domine l’ élément hystérique, Et cela fail que je n´aie pas de traits hystériques extérieurs […}.

(Do ponto de vista psiquiátrico, sou um histeroneurastênico, mas, felizmente, a minha neuropsicose é assaz fraca; o elemento neurastênico domina o elemento histérico, e disso resulta que não tenho sinais histéricos exteriores.)

E assim Satã, o mesmo que se confessa com parcos conhecimentos com respeito ao magnetismo, recheia a carta com “nevroses proteiformes”, “cerebralidades excessivas” , ”aplicações centrífugas” e “vontades centrípetas”, descendo às minúcias de seus processos de raciocínio, para finalmente desculpar-se  com os senhores Hector e Henri Durville pelas suas “considerações assaz longas e aborrecidas”. Acontece que ele, Satã, quer desenvolver sua vontade de ação, livrando-se de seu temperamento eminentemente desmagnetizador.

Não sabemos se obteve resposta a carta, nem mesmo se foi postada.

Progressista também Satã. Em 1939, sob o nome de Chester Carlson, inventou o processo da reprografia, ou seja, as fotocópias. Poucos saberão, entretanto, (Mas o sabem o Senhor e seus anjos) que toda a empreitada foi um sutil comentário ao Nosce te Ipsum de São Bernardo de Claraval, no qual este afirmava que o primeiro passo na direção errada não era a luxúria ou a preguiça, mas a curiosidade.

A imagem preferida do santo para ilustrar sua tese era o da dama se mirando ao espelho. Cumpre acrescentar que Satã via na fotocopiadora uma produtora de espelhos ad infinitum e, quando de sua produção em série pela Xerox, uma operação que visava a automatizar o pecado. Satã trouxe o pecado da vaidade para a escala industrial.

Aliás e a propósito, quanta zombaria no nome XEROX, sugerido por Satã para substituir a denominação anterior da empresa, HALOID. Duas cruzes de Santo André ladeando três letras, deboche consciente da trindade. E ainda, E, R e O, numerologicamente podem ser reduzidos ao numero dois (5+18+15). Dois, o oposto, o rival, diabolos.

Fez afixar Satã, na sede da empresa em Rochester, uma placa de bronze: Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor. 2 Coríntios 3:18.

E é claro, brilhante jogador de futebol também, Satã.

Mas aí são já outras glórias.

Amém.

Nosso adeus para uma dama sueca

EU ONTEM VI

Greta Garbo em Rainha Christina

achei John Gilbert feio e ela um baita mulherão

e na pele de Ninotchka, ela sorriu

não. Desculpem.

Margreta Lovisa Gustavsson parecia uma menininha assustada

Margreta Gustavsson parecia a matriz do mistério e da sedução

Margreta Gustavssom parecia um pássaro Negro, Luzidio, Meditativo

provavelmente Margreta Gustavsson foi uma das maiores mentirosas do milênio passado.

me entendam: de que tipo de mentira?

esta mentira. Margreta Gustavsson jamais existiu pra nós

o que talvez tenha sido a maior dádiva que ela nos deixou

seu pastorado curto e maravilhoso

O CORINTIANO VOADOR RELATA SEU PARTICULAR EPISÓDIO DE EPIFANIA, BEM COMO DE SUA ÚLTIMA VISITA A UM TEMPLO (Apaguem seus cigarros, por favor)

Shademaster by darksack _ DeviantArt

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E eis que estava eu, meninote de dez anos e junto a mim minha santa mãe e uma outra tia, talvez não tão santa, mas tia não obstante.

Agora, minha santa mãe, se dizia ela católica devota com santa de sua particular devoção. O que não obstava a que frequentasse benzedeiras diversas, terreiros de candomblé, igrejas de religiões asiáticas  e, ó fatalidade, uma igreja neopentecostal. Desta feita, levada ela por aquela outra tia minha, não tão santa, mas tia.

Não direi o nome da igreja, até porque nada tenho contra igrejas neopentecostais, embora as evite. Mas até aí também evito todos os outros templos de fé ora em atividade, aí incluso os católicos. Mas bem, a igreja neopentecostal. Minha mãe fazia questão de que eu a acompanhasse e assim eu passava horas, com uma gastura raivosa, ouvindo a edificantes sermões pastorais e a não menos edificantes hinos (me lembro de todos até hoje).

Eram os anos oitenta e eis que num destes cultos, ao final, formava-se uma fila onde os fiéis eram abençoados por um homem de Deus qualquer, a mó de uma fila de hóstia. Entretanto, na terceira vez em que lá estava eu, na fila (junto com minha santa mãe), percebi que o pastor servia algo em uma vieira de plástico azul que era sorvida pelos fiéis sedentos (sei, anti-higiênico).

 A beberagem, descobri depois, era ofertada por conta de aquela ser a Semana do Mel da Salvação, onde se ingeria um pouco de xarope de milho adocicado que eu, aliás, adorei (lembrem-se, era eu um petiz ingênuo e os doces à época eram racionados, assim como os refrigerantes).

Mas, forçoso dizer, adorei o Mel da Salvação. Era como que um presente, um agrado por conta das longas horas sentados ou, na maior parte das vezes, de pé, cantando e entrando em êxtase e falando em línguas (nunca fui bom em nenhuma das duas coisas).

Mas, eis que, no último e fatal culto se formou novamente a fila, na qual entrei pimpão e feliz na expectativa da dulcíssima oferta. E lá estava eu, minha santa mãe ao lado e minha tia, não tão santa mas tia inda assim.

Os mesmos pastores e as mesmas vieiras com um líquido amarelado, ambos, tenho certeza, a merecer os cuidados da vigilância sanitária. Bem, eu na fila e eu defronte ao glorioso pastor, um cavalheiro gigantesco de luzidia tez escura e voz tonitroante. Foi-me ofertada a vieira e eu, o petiz ingênuo, não tive dúvidas, virei todo o conteúdo.

Mas, e há um grande “mas” aqui, não sabia eu que aquela não era mais a Semana do Mel da Salvação. Não, aquela era a Semana do Santo Óleo do Senhor, na qual cumpria aos fiéis molhar os dedos na desconhecida substância oleaginosa (óleo de soja? De milho? O que sei eu?); como eu dizia, untar a mão no óleo santo e levá-lo à testa em persignação.

Mas eu sabia? Só sei que tão logo senti o gosto na língua, cuspi todo o conteúdo. Infelizmente com o ato vi besuntada toda a face do valente homem de Deus diante de mim. E lá estava ele, brilhando, as fauces congestionadas de onde escorriam o sagrado óleo misturado a não tão sagrada saliva infantil.

Envergonho-me, mas relato que de imediato fui submetido a uma completa sessão de expulsão demoníaca, pois ficou claro que o Pé-Preto, o Pedro Botelho, o Dianho, o Coisa-Ruim, o Que-Diga, o Cão-Ciúme, o Pemba, o enviado de Satanás e o Chief Executive Officer e Public Relations de Lúcifer estavam dentro de mim.

Ocorre que mesmo sendo à época um petiz ingênuo, não significava fosse eu parvo de todo. Modos que suportei toda a sessão com uma alguma galhardia, com direito ao esperado final catártico no qual me declarei livre de todo o mal, que estava me sentindo mais leve e tal, junto com um “obrigado, obrigado”, seguido pelos tradicionais “Ó glória”.

Minha santa mãe, envergonhadíssima, me endereçou seu especial olhar de mãe profissional com promessas de severo colóquio a posteriori  acompanhado de merecidos croques em minha inocente calota craniana.

Interessante que minha santa mãe, após a sessão moralizante sob o olhar vigilante de minha não tão santa tia, mirou-me de cima a baixo e desatou a rir, incontrolavelmente, com gorgolejos úmidos. Menino mau, ela dizia, menino mau.

Termino informando que me foi proibida terminantemente a frequência ao santo templo (Obrigado ó Senhor) e, não menos interessante, minha santa mãe estendeu a proibição a si mesma.

Soube depois que minha tia tivera depois seu próprio episódio de possessão, desta feita num centro de umbanda. Ignoro qual entidade preternatural ocupou seus transtornados corpo e mente.

Ah, era Afonso, acho, o nome do pastor.

Obrigado, Afonso.

GARÇOM

E finda está a trilogia das versões latinas . A obra máxima das mágoas de amor etílicas. Componham o drama em suas mentes: uma mesa de bar, beberagens diversas, um garçom obsequioso e uma carta remetida pelo amor de sua vida informando que vai se casar. Somente o vate supremo, Reginaldo Rossi, o faria.

FAMULUS (GARÇOM)

Composita et cantata a Reginaldus Russorum vel Rossius

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Famulus, hic ad mensam hanc tabernam

Scio te taedet audire

Centum eventus amoris

Famulus, in taberna quisque est aequalis

Casus meus unus plus est, suus banal

Sed attende quaeso

Scitote quod magnus amor meus

Hodie nubit

Ea misit litteras ad me scire

et dereliquit cor meum in fragmenta

Et ad finem tristitiae

Tantum ad mensam taberna

Volo multum bibere

Volo inebriari

et, si ego dormio

deposit me in terra

Famulus, scio me terebravisse

Sed omnis ebrius accipit odiosis

fortis et absolute rectum fit

Famulus, sed ego iustus volo clamare

Dabo quod debeo

Ideo peto ut operam tuam

Scitote quod magnus amor meus

Hodie nubit

FUSCÃO PRETO

Saudações.

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Continuando minha virtuosa campanha de resgatar às obras magnas do engenho humano, posto agora minha singela versão latina de FUSCÃO PRETO que, como sabeis, foi dada à lume pelo poeta Almirus Rogerius para gáudio de toda uma geração.

NIGER CURRUS (Fuscão Preto)

Carmen compositum et cantatum ab Almirus Rogerius

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Dictum est mihi amica mea visa est cum alio viro

In nigrum currus aurigabat circa oppidum

Bene induta, tanquam peritae hetairae

Olfaciens alcohol et fumigans incessanter

Deus meus in caelo dic mihi hoc mendacium!

Si vera est, illumina me de misericordia

Paulo post ipse vidi predictum currum nigrum

Et duo pariter discissio in amore

Currus niger, fabricati estis ex chalybe

Per tuum opus pectus meum scissum est

Quid ergo didicisti occidere?

O currus niger, hic tuus execrandus rugitus!

Elegantissimum castrum meum

confregisti eam